Osíris Ferreira: “O mundo precisa de dignidade humana”

A importância de combater o medo é, para Osíris Ferreira, umas das principais lições deixadas por Nelson Mandela.
Artigo atualizado a 23-07-2018

Entrevista a Osíris Ferreira

O centenário de Nelson Mandela motivou diversas iniciativas em Lisboa, e por todo o mundo, em que figuras de relevo celebraram o legado do carismático líder cuja vida foi dedicada ao combate do apartheid. Osíris Ferreira foi uma dessas figuras. O Juiz do Supremo Tribunal da Guiné-Bissau recordou as lições do líder histórico sul-africano.

Qual a importância de recordarmos e, sobretudo, de não esquecermos Nelson Mandela?

Celebrar Nelson Mandela é celebrar toda uma vida. Nelson Mandela foi um Homem que, apesar de todo o tempo que passou na prisão, mostrou ao mundo que é preciso ter dignidade humana. Sem dignidade humana não podemos ser solidários.

Nelson Mandela foi um gigante da promoção dos direitos humanos e todos os seus ensinamentos foram, e são, muito importantes. A sua resistência mostrou ao mundo que é preciso ver através do outro e não pelo quanto sofremos durante a nossa vida. O mundo de hoje precisa disto, precisa de ver o outro como igual.

Como é que o legado de Nelson Mandela pode inspirar os países que estão a iniciar processos de reconciliação?

O legado de Nelson Mandela é uma fonte de inspiração para todos nós. A humanidade, os outros líderes africanos e todos os líderes mundiais devem ver aquilo que foi o passado de Nelson Mandela. Ele fez um luto do seu passado, mostrando que é preciso transmitir a esperança de um mundo novo para as crianças e para toda a humanidade. É preciso uma humanidade de esperança e de solidariedade.

Quais as principais lições de Nelson Mandela?

Uma das principais lições deixadas por Nelson Mandela é a importância de combater o medo. O medo de lutar contra o que é a pobreza, o medo de deixar o seu ego de lado para ir ao encontro do outro. Acho que é um legado que não nos podemos esquecer. Isto porque podemos utilizar o medo para nos aproximarmos dos outros, sem os vermos como inimigos. O inimigo tem a sua potencialidade e devemos transformá-la numa ponte para a humanidade e para o mundo.

O que tem sido feito na Guiné-Bissau para alcançar a reconciliação nacional?

Na Guiné-Bissau estamos a concluir uma fase preparatória para a Conferência Nacional, para a qual foi produzido o relatório “Em nome da Paz”, em que foram ouvidas mais de 3 mil pessoas num processo de auscultação.

A Conferência terá como objetivo escolher modelos para a reconciliação nacional, inspirando-se, também, nos modelos já existentes para criar um processo dentro da nossa realidade e com os nossos valores, mas sem deixar de aprender com a outra margem do mundo – África do Sul, Timor, Colômbia. As experiências dos outros são uma fonte de inspiração para capitalizarmos a nossa realidade, para que haja esperança para o nosso povo.

Quais os grandes desafios que a Guiné-Bissau, e os guineenses, enfrentam nesse processo?

O principal desafio tem sido pôr os nossos atores sociais a assumir este processo como um processo nacional. Tem de haver uma apropriação nacional do processo e uma participação nacional inclusiva, em que todos são chamados – mulheres, crianças, militares, políticos e todas as forças vivas da sociedade – para podermos ser um só: uma Guiné reconciliada com a sua história e com o seu passado, projetando o futuro.

A instabilidade do país, a impunidade e a falta de democracia, de autoridade do Estado e de credibilidade na justiça são fatores cruciais na Guiné-Bissau e que não ajudam ao processo de reconciliação. Como enfrentar estas questões?

Tem de ser um trabalho do dia a dia, porque a paz é um processo, é uma caminhada que cada um de nós vai fazendo. Não há decretos presidenciais para um processo de paz.

A Guiné tem uma história violenta, mas isso não nos faz deixar de acreditar que é possível dizer “basta” à violação dos direitos humanos. Uma sociedade reconciliada com o seu passado poderá ter esperanças para o desenvolvimento do futuro. E Nelson Mandela dizia que “não podemos construir uma democracia com fome, pois uma sociedade sem educação torna-se numa concha vazia”. Temos que acreditar que é possível mudar e que é possível lutar contra a violação dos direitos humanos. E isso deve ser o papel do guineense: o dever de acreditar que é possível.

Sente-se alguma diferença nessas movimentações, nessa vontade do próprio guineense em lutar por uma sociedade mais justa?

As auscultações que fizemos mostram a vontade dos guineenses em querer a paz. O nosso relatório foi denominado “Em nome da Paz” pela esperança de aprender com os outros e de todos juntos podermos caminhar para uma sociedade reconciliada. Para uma Guiné melhor, de paz, e reconciliada com a sua história.

O que deve ser feito para alcançar a paz?

Para a paz é preciso um processo inclusivo e é necessário que seja definida uma visão partilhada em que todos os atores políticos e sociais são chamados para um único processo. A paz deve ser a nossa missão e sem ela não podemos fazer nada. Não podemos ficar parados porque estamos na ausência de guerra e achar que estamos em paz, isso é uma ilusão. Precisamos de trabalhar todos juntos num processo inclusivo para atingirmos a tão almejada paz.

E como é que isso se faz com tantas etnias?

Nenhuma etnia é superior à outra. Uma das causas do conflito é existirem etnias que, ao serem maioritárias, pensam que podem dominar os outros. Mas não, precisamos sempre uns dos outros. Além disso, hoje em dia já não etnias maioritárias, não há guineense que não seja “misturado”. A Guiné tem mais de 20 etnias mas, no fundo, é tudo miscigenado.

Sobre Osíris Ferreira

Além de Juiz do Supremo Tribunal da Guiné-Bissau, Osíris Ferreira é secretário da Comissão Organizadora da Conferência Nacional (COCN), nomeada pela Assembleia Nacional Popular com o mandato de preparar o processo de reconciliação nacional.

Osíris Ferreira é ainda coautor do relatório “Em nome da Paz”, no âmbito do mandato da COCN, elaborado depois de um longo processo de consultas nacionais que envolveram mais de três mil pessoas na diáspora guineense e no país, de todos os quadrantes sociais.

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