arte e a música não servem só para entreter. São nossas aliadas quando precisamos de cuidar das emoções. Descubra como a criatividade e a cultura ajudam a enfrentar o estigma, a vergonha e a desinformação, e como podem fazer a diferença na nossa saúde mental.
Marisa estava à procura de qualquer coisa, mas não sabia bem o quê. Não se sentia perdida, mas faltava-lhe algo. Foi então que escreveu a canção Quero Sentir. No instante em que terminou a letra, desabou em lágrimas. “Encontrei o que precisava”, conta à Revista Montepio. “Foi uma sensação de alívio e de libertação.”
A música nasceu do seu interior: a sua história, o seu caminho, as dores caladas. Ao escrevê-la, encontrou a paz que procurava. “Aquela canção trouxe-me o encerramento. Era o pedacinho que me faltava”, confessa.
No palco, Marisa é Mimicat — artista, compositora e intérprete. Fora dele, é uma mulher como tantas outras, que também vive momentos menos bons. E, tal como muitas pessoas, encontra na arte um modo de enfrentar as suas fragilidades. “A nossa arte é a nossa forma de lidar com a vida”, diz a vencedora da edição de 2023 do Festival da Canção.
Histórias como a de Mimicat não são exceção. Mas será que a cultura, além de entreter, pode realmente aliviar, transformar ou reorganizar o nosso interior? Para quem vive e trabalha nesta interseção entre arte e saúde mental, a resposta é clara: sim, tem um papel muito importante.
PLANO MONTEPIO SAÚDE
Proteja a sua saúde a partir de zero euros
O corpo não mente
“O corpo não mente, mas a mente pode mentir”, afirma Liliane Viegas, psicóloga clínica e terapeuta corporal especializada em Dança Movimento Terapia (DMT). Para Liliane, que se reformou recentemente após 20 anos de trabalho no Hospital Júlio de Matos, hospital especializado em psiquiatria e saúde mental, em Lisboa, integrar o corpo na terapia é essencial, porque muitas das nossas memórias traumáticas ficam armazenadas nos tecidos, nos músculos e na postura.
A doença mental, explica, manifesta-se muitas vezes como “um bloqueio, uma cristalização” da energia vital. “Em contexto de psiquiatria, o grande objetivo é devolver o corpo às pessoas.” Muitos dos pacientes com quem trabalhou estavam dissociados da realidade, altamente medicados e mergulhados em sofrimento profundo. “Ruminavam ideias, viviam imersos em fantasias, memórias perturbadoras ou alucinações.” A intervenção, por isso, passa por trazê-los de volta ao aqui e agora — e essa reintegração faz-se pelo corpo.
As sessões de DMT, geralmente realizadas em grupo, envolvem movimento, música e interação. No final, há uma fase de integração: os participantes exprimem o que sentiram através de palavras, desenhos, gestos, e reconhecem o que mudou desde o início. O feedback é consistente: “‘Sinto-me mais leve, menos ansioso’ ou ‘Aqui posso ser eu’”, diz Liliane, que ouviu estas palavras inúmeras vezes ao longo da sua carreira.
No entanto, a DMT não se dirige apenas a pessoas com patologias psiquiátricas graves. A prática é também eficaz no tratamento da ansiedade, depressão leve ou simplesmente em situações de tensão acumulada. “Para muitas pessoas, só o facto de poderem mover-se em liberdade, sem juízos de valor, já é transformador. Saborear a liberdade, sentir prazer e leveza, é um caminho para o bem-estar emocional”, sublinha.
A ciência também sustenta esta prática. Estudos recentes nas neurociências demonstram os efeitos positivos da DMT na regulação emocional e na neuroplasticidade, principalmente através do conceito de “relação espelho” — estar em sintonia com o outro, seguir o seu movimento —, uma dinâmica que remete para a relação mãe-bebé e que é fundamental para o bem-estar afetivo. “A possibilidade de nos movermos com liberdade, sem que alguém dite o certo ou o errado, permite-nos saborear a liberdade e sentir prazer. E esse prazer, essa leveza, já é terapêutica”, conclui Liliane.
REVISTA MONTEPIO
Como a saúde mental passou a fazer parte da nossa vida
Teatro: reinvenção do eu
No coração de Lisboa, um projeto mostra, de forma palpável, o impacto da cultura na saúde mental. Há 20 anos, a psicóloga e psicoterapeuta Sónia Santos fundou um grupo de teatro terapêutico na Unidade de Saúde W+ da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). O que começou como uma experiência tornou-se uma das iniciativas de arte-terapia mais duradouras em Portugal. “Na altura, percebi que a terapia face a face, apesar de essencial, nem sempre é suficiente”, conta a diretora da Unidade de Saúde W+. O teatro oferecia aos adolescentes algo de que precisavam: sentido de pertença. E, mais do que isso, uma verdadeira sensação de empoderamento.
“Muitos dos miúdos com quem trabalhamos já têm, aos 15 ou 16 anos, um historial de fracassos percebidos. São vistos como ‘miúdos problema’”, refere Sónia. “De repente, estão a ensaiar uma peça, a levá-la a palco, e a sociedade aplaude-os. Isto transforma o modo como se veem e como sentem que os outros os veem.” A diferença entre aconselhamento tradicional e teatro terapêutico é clara: “Uma coisa é ter alguém a dizer ‘tu és capaz’. Outra é experienciar que somos capazes. O teatro dá-lhes isso.”
Os resultados são evidentes. Jovens que nunca acreditaram ser capazes de aprender, decoraram e interpretaram peças inteiras. Outros, que nunca tinham lido um livro, descobriram o gosto pela leitura ao adaptar Os Capitães da Areia para o palco. “De repente, estavam a entrar em livrarias à procura de mais livros”, recorda Sónia. “São pequenas grandes transformações, e elas significam tudo.”
Este ano, o grupo apresentará a peça P.E.R.D.A. no Festival Mental. O nome surgiu da própria experiência dos 19 jovens envolvidos. “O que todos sentiam que tinham em comum era o tema da perda”, diz Sónia. “Queremos falar de como se pode ressignificar a perda e construir algo novo”, conclui.
“Tenho recebido mensagens de fãs que me dizem que as minhas músicas os ajudaram a atravessar momentos difíceis. Muitas falam de superação. E é bom saber que, de alguma forma, contribui para isso”
Uma canção para nascer
Para Mimicat, a ligação entre música e bem-estar emocional é algo profundamente tangível. Uma das experiências mais marcantes que vivenciou foi durante o parto do seu primeiro filho. “Escrevi uma canção chamada Tudo ao Ar quando estava grávida de oito meses. Falava sobre recomeçar quando tudo parece estar contra nós. Durante o parto, a música ficou em loop na minha cabeça. Foi caricato, mas ajudou-me naquele momento”, conta a artista.
No entanto, a relação entre música e emoção é, para Mimicat, bidirecional. A cantora encontra consolo nas músicas que escreve, mas também vê esse efeito no público. “Tenho recebido mensagens de fãs que me dizem que as minhas músicas os ajudaram a atravessar momentos difíceis. Muitas falam de superação. E é bom saber que, de alguma forma, contribui para isso”, revela, mostrando como a sua arte não só a ajuda a ela, mas também tem o poder de tocar e curar outras pessoas.
REVISTA MONTEPIO
O que eu faço pelos meus filhos
Festival Mental: onde todos os mundos se encontram
Foi com o desejo de criar um espaço de expressão, empatia e comunidade que nasceu, em 2017, o Festival Mental, um evento onde arte, ciência e sociedade se cruzam para falar abertamente de saúde mental. “Queríamos criar um espaço onde se pudesse falar de saúde mental sem medo, sem vergonha e sem estigma”, sublinha Ana Pinto Coelho, fundadora e curadora do projeto.
Em 2025, o festival — que celebra a sua 9.ª edição e é apoiado pelo Montepio Associação Mutualista — regressa a Lisboa entre 22 e 25 de maio com uma programação renovada e várias novidades. Uma delas é o M-Click, um formato dinâmico de apresentações curtas (semelhante a uma Ted Talk), em que convidados partilham, em apenas dez minutos, ideias criativas sobre a promoção da saúde mental. Também a Mostra Internacional de Curtas-Metragens, um dos momentos altos do evento, ganha novo fôlego com a introdução do primeiro prémio para melhor filme, atribuído por um júri que junta especialistas do cinema, da psicologia e do jornalismo.
“Para nós, o Festival Mental é essencial. Devia acontecer mais vezes por ano”, afirma Sónia Santos. “A missão de despatologizar a saúde mental e aproximar a sociedade destes temas é fundamental.” Liliane Viegas concorda: “O festival abre espaço. Junta artistas, médicos e público num diálogo único e isso ajuda a quebrar preconceitos. Porque quem tem uma doença mental é uma pessoa como qualquer outra.”
Para os jovens do grupo de teatro terapêutico, participar neste festival é um gesto de validação e reconhecimento. “Sentem-se vistos”, diz Sónia Santos. Já para artistas como Mimicat, fazer parte da iniciativa é um modo de reforçar o papel curativo da arte. “A saúde mental está num estado frágil. Precisamos de mais espaços onde possamos falar, expressar e informar”, defende.
No fim de contas, talvez a pergunta não seja se a cultura cura. A verdadeira questão é: poderíamos viver sem ela?
Festival Mental 2025: quais os destaques?
O Festival Mental regressa a Lisboa entre 22 e 25 de maio com uma programação renovada que promete provocar a reflexão e o diálogo.
O que ver:
M-Click: apresentações curtas e impactantes sobre inovação em saúde mental
M-sénior: atividades direcionadas para público sénior
Prémio de Melhor Curta-Metragem, com júri especializado
My Story/My Song com Mimicat, que alia música e testemunho pessoal
M-Talks, com foco em temas sensíveis e atuais: “bullying e luto” e “guerra e trauma”
Atividades ao ar livre como o M-Natura, e oficinas terapêuticas
Onde ver:
Locais: Cinema São Jorge, atmosfera m Lisboa, Auditório da Biblioteca Orlando Ribeiro, Parque Hortícola de Telheiras
Entradas: Muitas atividades são gratuitas, mas algumas requerem inscrição prévia
Mais informações em mental.pt e no Instagram, em @mental.pt