Ainda sabemos apreciar arte?

Ainda sabemos apreciar arte?
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Fotografias de Marcos Borga
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presença constante dos telemóveis em espetáculos, a pressão das redes sociais e a concorrência do streaming levantam dúvidas sobre o modo como vivemos a cultura. Mas será mesmo um sinal de afastamento entre o público ou apenas a adaptação a novas audiências? Entre palcos cheios, novas gerações de público e artistas que se reinventam, há sinais de mudança. Afinal, talvez estejamos apenas a aprender a apreciar… de outra forma.

No ambiente intimista da galeria Atmosfera m, no coração de Lisboa, dezenas de visitantes circulam entre as fotografias a preto e branco de Alfredo Cunha. A exposição Paraíso de Coura, que capta momentos do histórico festival de música Paredes de Coura, revela rostos iluminados pela música, corpos em movimento e as paisagens bucólicas do norte de Portugal. Enquanto alguns observadores se detêm longamente diante de cada imagem, outros apontam os smartphones para as fotografias, criando um curioso efeito meta: fotografias de fotografias que, em segundos, serão partilhadas nas redes sociais. Esta cena, que se repete em museus, concertos e galerias pelo mundo, levanta uma questão da nossa era: ainda sabemos apreciar arte?

Em Portugal, esta tensão entre o registo digital e a experiência direta tem sido motivo de debate entre artistas, curadores e produtores culturais. Falámos com alguns deles para perceber se, entre o deve e o haver, a mediação tecnológica enriquece ou empobrece a relação com a arte.

O multipremiado fotógrafo Alfredo Cunha posa para a Revista Montepio na exposição “Paraíso de Coura”, apoiada pelo Montepio Associação Mutualista

O panorama cultural português

Segundo os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2023 houve um aumento de 14,9% no número de espetáculos ao vivo em Portugal e uma subida de 28,5% nas receitas, totalizando 189,2 milhões de euros. Ainda assim, o consumo cultural mantém-se desequilibrado: o pop rock atrai a maioria do público, enquanto outras expressões artísticas, como o teatro e a dança, lutam pela devida visibilidade. O próprio teatro, apesar de liderar em número de sessões (14 824), registou uma ligeira descida de espetadores e um decréscimo de 21,6% nas receitas. Já nos museus, os 18,1 milhões de visitantes ficam aquém dos níveis pré-pandémicos e quase metade desse público é estrangeiro.

Estes números sugerem que, apesar da recuperação, nem todos os setores da cultura beneficiam igualmente da retoma. Será a realidade traduzida nas estatísticas?

Diogo Infante, ator e diretor artístico do Teatro da Trindade, afirma que a sua experiência no terreno conta outra história. “Esses números ainda refletem muito o ano da pandemia. No Teatro da Trindade, a situação é exatamente a oposta: grande parte dos nossos espetáculos começam a vender-se muito antes sequer de serem divulgados.” Para o encenador, o público português continua interessado no teatro e está cada vez mais exigente, bem informado e consciente das opções culturais à sua disposição. “Neste momento estou nos Açores com o espetáculo Telhados de Vidro, em digressão há cinco meses. O público tem esgotado todas as salas por onde passamos”, exemplifica.

“Fiz um espetáculo no Teatro Micaelense, com cerca de 700 pessoas, e apenas um telemóvel tocou. Isso mostra que há progresso. O público está mais consciente”

Diogo Infante, ator e encenador

Estaremos mais dispersos?

Apesar do crescente interesse por espetáculos ao vivo, a atenção plena tornou-se mais difícil de conquistar. A multiplicação de estímulos – sobretudo digitais – interfere no modo como nos relacionamos com a arte. A utilização de smartphones durante concertos, peças de teatro ou exposições divide as opiniões: para uns, distrai e fragmenta a experiência; para outros, é uma nova forma de presença, partilha e promoção cultural. Alfredo Cunha, fotógrafo da exposição Paraíso de Coura, vê nessa prática um reflexo natural dos tempos: “Faz parte da vivência atual. A fotografia digital democratizou o acesso à imagem, permitindo a qualquer um criar bons registos e divulgá-los rapidamente.”

A própria diversidade da oferta cultural também pode gerar dispersão. Diogo Infante reconhece que, atualmente, há muito mais concorrência pelo tempo e atenção do público: “Hoje existe uma grande variedade de espetáculos, desde musicais até teatro contemporâneo. Há muitas produtoras independentes, espetáculos mais pequenos, espetáculos maiores… o público tem mais por onde escolher e, naturalmente, acaba por dispersar-se.”

Esta difusão aumenta quando consideramos o impacto das plataformas digitais. A explosão do streaming e das redes sociais multiplicou as opções disponíveis sem sair de casa, oferecendo conteúdos imediatos e acessíveis a qualquer hora. Neste cenário, frequentar uma sala de espetáculos ou visitar uma exposição torna-se um compromisso maior, exigindo do público mais esforço e intenção. Ainda assim, Diogo Infante insiste que vale a pena esse esforço extra: “Acredito que o público continua a querer viver experiências autênticas e presenciais, precisamente porque o que se sente no teatro ao vivo nunca poderá ser substituído por um ecrã.”

O diretor do festival Paredes de Coura, João Carvalho, emula uma célebre fotografia de Alfredo Cunha. Em Coura, os telemóveis são um acessório (quase) desnecessário.

Cultura com assinatura mutualista

Ao longo dos últimos anos, o Montepio Associação Mutualista tem reforçado o seu compromisso com a cultura ao apoiar projetos que promovem o acesso à arte e à criação artística em diferentes formatos e linguagens.

A galeria Atmosfera m, em Lisboa, é um dos principais espaços desse investimento: um ponto de encontro entre artistas, associados e o público, onde têm lugar exposições, concertos, lançamentos e conversas. A exposição Paraíso de Coura, com fotografias de Alfredo Cunha, é um dos mais recentes exemplos dessa aposta na aproximação entre arte e comunidade. Com entrada gratuita, programação regular e um ambiente intimista, a Atmosfera m tem sido um palco alternativo para quem procura viver a cultura com proximidade e significado. E com tempo para apreciar.

Diferentes gerações, diferentes públicos

Com mais de quatro décadas de carreira, Lena d’Água testemunhou de perto as muitas transformações do público português. Na década de 1970, quando começou a cantar, a audiência era composta, maioritariamente, “por miúdos”, sobretudo do sexo masculino. “As mulheres eram muito raras. Hoje em dia, penso que já estamos nos 50-50.”

Mas não foi só a composição do género que mudou. A ligação com o público tornou-se mais direta, mais calorosa e, sobretudo, mais diversa. “Tenho pessoas da minha geração, da idade da minha filha, e agora também muitos fãs pequeninos. Alguns ainda vêm ao colo. É muito gratificante.”

Parte desse novo público chegou através da escola: músicas da artista com poemas de Florbela Espanca e Cecília Meireles integram o Plano Nacional de Leitura e despertaram a curiosidade de adolescentes em aulas à distância durante a pandemia. “Foi assim que me descobriram”, conta a cantora.

No teatro, Diogo Infante confirma essa diversidade crescente. “Há uns anos, talvez o público fosse mais envelhecido. Hoje vemos salas com muita gente nova, famílias. Depende sempre do espetáculo, mas acho que o público do teatro aumentou nos últimos dez anos.” Esta transformação não se reflete apenas na idade média do público, mas também nos hábitos. “Ao domingo, nas matinés, temos mais público sénior, que não gosta de sair à noite. Ao mesmo tempo, temos muito público jovem, que quer ver atores da sua geração, muitos deles vindos da televisão.”

Segundo o encenador, esta segmentação mostra como o teatro se tem ajustado aos diferentes ritmos da vida contemporânea. “Claro que depois há também a faixa dos 25 aos 40, que tem mais poder de compra, mas sai menos por estar a trabalhar. Ainda assim, o ato social de sair e ir ao teatro começa a fazer parte dos programas de quem quer contrariar a inércia de ficar em casa a ver a Netflix”, conclui.

“Antes dos concertos, há sempre uma voz-off a pedir que não se fotografem nem filmem as atuações. Mas não me incomoda nada e até gosto. Mandam-me pelo Instagram, eu guardo, é uma memória visual”

Lena d’Água, cantora

Telemóveis à porta: será boa ideia?

A lista de artistas que decidiram proibir o uso de telemóveis nos seus concertos continua a aumentar. Jack White, Alicia Keys, Bob Dylan e Madonna estão entre os nomes que exigem que o público guarde os dispositivos em bolsas seladas à entrada. O objetivo? Recuperar a atenção plena, a ligação direta entre artista e plateia e, em muitos casos, preservar a espontaneidade do espetáculo. A tendência levanta a questão: estaremos a sacrificar a experiência ao vivo em nome do registo digital?

Diogo Infante não defende proibições absolutas, mas reconhece que os telemóveis continuam a ser uma fonte de distração. “Estamos todos empenhados em sensibilizar o público, mas não podemos simplesmente inibir o uso dos telemóveis. É necessário educar, apelar à compreensão e mostrar que, ao estarmos presentes e atentos, ganhamos algo que nenhum ecrã poderá oferecer.” Ainda assim, partilha um episódio recente com otimismo: “Fiz um espetáculo no Teatro Micaelense, com cerca de 700 pessoas, e apenas um telemóvel tocou. Isso mostra que há progresso. O público está mais consciente.”

João Carvalho, diretor do festival Paredes de Coura, também tem reservas quanto à proibição. Mas não esquece um momento marcante: “Fui a um concerto com a minha filha e vi quase toda a gente com o telemóvel no ar. Ninguém estava verdadeiramente a viver o momento. Isso fez-me pensar.” Ainda assim, acredita que a experiência certa pode ser mais forte do que qualquer ecrã: “Em Coura não precisamos de proibir nada. O ambiente fala por si. As pessoas desligam-se naturalmente.”

Se não podemos evitar a evolução da sociedade, temos de nos adaptar. A curadora de fotografia Sandra Maria Teixeira acredita que a solução está na criação de contextos envolventes. “Em Paredes de Coura, as pessoas estão mesmo ali. Tocam guitarra, conversam, brincam no rio. Não é preciso impor regras, o ambiente convida à presença.” A curadora alerta para o excesso de registos que nunca se tornam memórias reais: “Há quem fale numa ‘desumanização’ provocada pelo instantâneo digital. Depois, há aquela contracorrente, um regresso ao vintage: o vinil, a fotografia analógica, a procura de algo mais humano. Muita gente tira 800 fotos nas férias, guarda-as num disco e nunca mais olha para elas. Isso não faz sentido. Nem se aproveita realmente o momento.”

Também Lena d’Água olha para esta realidade com a serenidade de quem já viu várias modas passar. E se muitos artistas se mostram incomodados com a presença de telemóveis na plateia, a cantora não se revê nessa preocupação. “Nos concertos que tenho feito em teatros raramente noto esse fenómeno. Há sempre uma voz-off a pedir que não se fotografem nem filmem as atuações. Mesmo quando alguém o faz, não me incomoda nada. Até gosto. Mandam-me pelo Instagram, eu guardo, é uma memória visual”, conclui a cantora.

A arte continua a encontrar espaço para acontecer e florescer, mesmo que seja entre um scroll e uma fotografia partilhada. Segundo o fotógrafo Alfredo Cunha, o mais importante será perceber que, se a ligação for verdadeira, “há sempre algo que fica”. Seja na memória – do cérebro ou do telemóvel – ou, simplesmente, no momento.

Sandra Teixeira junto a uma fotografia de Manel Cruz, dos Ornatos Violeta. “Em Paredes de Coura, não é preciso impor regras. O ambiente convida à presença”, diz a curadora

Coldplay de joelhos num céu estrelado

Sexta-feira, 6 de maio de 2022. No Cotton Bowl Stadium, em Dallas, nos Estados Unidos, 58 669 pessoas assistem ao concerto dos Coldplay com os telemóveis no ar. Durante a música A Sky Full of Stars, o vocalista Chris Martin para de cantar, reúne os colegas de banda e faz um pedido ao público: “Por favor, por uma única música deixem os telemóveis no bolso. Depois podem gravar tudo o que quiserem. Tornem este momento único.”

Martin, que pede o mesmo em todos os concertos, já se habituou à presença dos telemóveis. No entanto, a banda tem tomado várias decisões para fazer com que o público se envolva mais e, assim, utilize menos o telemóvel. As pulseiras LED inteligentes, chamadas Xylobands, mudam de cor em sincronia com a música, criando um efeito visual que põe o público como parte viva do espetáculo. A experiência aumentou o interesse pelo espetáculo e os bilhetes, ainda que caros, voam em minutos.

Talvez esteja aqui um dos segredos da adaptação do velho showbizz aos novos públicos digitais. Ou, se calhar, teremos de esperar por uma nova moda que destrone esta.

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