É possível prever o azar?

É possível prever o azar?
15 minutos de leitura
Ilustração de Maria Lourenço
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scapar a um atentado terrorista, sobreviver a sete relâmpagos ou subscrever um seguro de saúde antes mesmo de ter uma doença incapacitante pode ser considerado sorte? E o azar é apenas fruto do acaso ou algo que podemos, de certo modo, antecipar? Neste artigo, exploramos a relação entre azar, probabilidade e os nossos padrões de comportamento que moldam as nossas decisões.

Foi a intuição – e um grupo de WhatsApp – que salvou a vida de Alfonso Alcolea. Este espanhol, natural de Múrcia, vive e trabalha em Bruxelas. Na manhã de 22 de março de 2016, preparava-se para sair de casa rumo ao escritório quando o telemóvel começou a vibrar com mensagens. “Fui avisado por amigos de que uma bomba tinha explodido no aeroporto de Zaventem [ndr: principal aeroporto belga, situado a 10 quilómetros do centro de Bruxelas]. Tinha havido um atentado terrorista.”

O aviso foi suficiente para mudar o rumo do seu dia. “Vivo na Bélgica há muitos anos, mas continuo a ser espanhol. Cresci com a ETA (ndr: Euskadi Ta Askatasuna, organização nacionalistas basca conhecida pela violência armada e terrorismo) e com os atentados de 11 de Março de 2004 em Atocha, Madrid. Aprendi duas coisas: por um lado, um terrorista raramente se fica por um único ataque; por outro, após um atentado, a cidade fecha-se. Entrar e sair torna-se muito difícil”, conta.

Decidiu, por isso, ir de bicicleta para o trabalho, evitando o metropolitano. Enquanto enchia os pneus – não usava este meio de transporte há muito tempo – foi recebendo mais mensagens. A estação de metro de Maelbeek, que usaria se seguisse a rotina habitual, também tinha sido alvo de um ataque.

Terá sido um golpe de sorte ou foi o destino que salvou a vida de Alfonso? Ou o murciano, por causa da experiência passada, estava precavido contra este tipo de acontecimentos?

A resposta não é clara, mas as perguntas são fascinantes. E, embora pareçam pertencer ao domínio da filosofia, interessam a matemáticos, psicólogos, atuários e economistas comportamentais. O objetivo? Perceber se é possível antecipar o azar e, sobretudo, aumentar as hipóteses de termos a sorte como nossa aliada.

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O que vemos e o que, na verdade, existe

Ao longo de milhões de anos de evolução, o cérebro humano especializou-se em reconhecer padrões. Uma sobrancelha franzida pode ser sinal de ameaça; um esgar dos lábios é indiciador de um sorriso. Na primeira imagem, ficamos em alerta, na segunda, tranquilizamo-nos. “Procurar padrões ou significados em acontecimentos aleatórios pode ser visto como uma tentativa de controlar o incontrolável, de encontrar padrões em situações muitas vezes imprevisíveis”, explica Ana Rita Silva, psicóloga no Hospital CUF Viseu. A procura por padrões é uma adaptação evolutiva que, embora tenha sido útil em muitos contextos, também pode conduzir a significados e atribuições enviesados na tentativa de lidar com a incerteza. “Tenta impor uma estrutura compreensível aos acontecimentos aleatórios”, refere a psicóloga.

De facto, a Internet está repleta de evidências de construções misteriosas em Marte. Na verdade, são apenas acasos: sulcos provocados pela erosão ou por tempestades de poeira, que parecem estranhamente organizados. Mas estamos treinados para encontrar sentido no inexplicável por uma questão de sobrevivência. Quando estes acasos escapam à nossa lógica, precisamos de preenchê-los com uma história. Por isso, chamamos “sorte” ao que, de forma inesperada, corre bem, e apelidamos de “azar” ao que corre mal.

Por norma, damos muito mais importância às histórias que têm um final feliz. É o chamado “viés de sobrevivência” descrito por Diágoras, um filósofo grego do século V a. C. Os helenos argumentavam que os deuses protegiam os marinheiros. Diágoras respondeu: “Temos essa impressão porque as embarcações naufragadas não podem ser pintadas.” Ou seja, estamos habituados a celebrar as histórias que correm bem, esquecendo aquelas que têm um desfecho diferente. Ainda que, estatisticamente, sejam em maior número.

Um dos casos mais conhecidos de sobrevivência talvez seja o de Roy C. Sullivan. Este ranger da Virgínia, nos Estados Unidos, foi atingido por relâmpagos não uma, não duas, não três, mas sete vezes ao longo da sua vida. Será este recorde uma história de sorte ou de azar? Por um lado, é preciso muito azar para se ser atingido por um relâmpago tantas vezes, ainda que a profissão dele o obrigasse a andar pelos campos, numa zona propensa a este tipo de fenómenos atmosféricos. Por outro lado, a verdade é que Sullivan sobreviveu sempre.

A sua história é contada e recontada, mas o National Weather Service afirma que, nos Estados Unidos da América, cerca de 24 pessoas morrem por ano devido a relâmpagos. Os seus nomes, porém, caem no esquecimento.

“A perspetiva de viver constantemente sob ‘mau agouro’ ou de ter sempre azar pode ter impactos profundos na saúde mental e no bem-estar psicológico, levando a uma sensação de espectador passivo e impotente”

Ana Rita Silva, psicóloga da CUF Viseu

A mente, o imprevisto e a procura de segurança

Não será apenas a matemática que influencia a nossa perceção do que é sorte ou azar. Uma roleta de casino está numerada do 0 ao 36. Sabemos, racionalmente, que as probabilidades de acertar no número certo são reduzidas: pouco mais de 2%. No entanto, a forma como interpretamos os acontecimentos também é moldada pelas emoções e pela memória. Lembramo-nos de dezenas de situações — em livros, séries ou filmes — em que alguém acerta no número vencedor. E, por isso, alimentamos a ideia de que talvez também possa acontecer connosco.

O que nos leva de volta a Alfonso Alcolea. “Tive amigos, também espanhóis, que estavam na estação de Maelbeek e decidiram sair de lá para não se exporem a um risco”, recorda. “Sem que, nesse momento, houvesse qualquer indício de um ataque no metropolitano”, acrescenta.

De facto, os nossos comportamentos são influenciados pelas experiências anteriores. É natural que, quem acredita que é perseguido pelo azar, desenvolva um comportamento defensivo no dia a dia, limitando não só as suas escolhas como também as oportunidades.

“A perspetiva de viver constantemente sob ‘mau agouro’ ou de ter sempre azar pode ter impactos profundos na saúde mental e no bem-estar psicológico, levando a uma sensação de espectador passivo e impotente”, explica a psicóloga Ana Rita Silva. A crença de que se é “azarado” pode instalar uma visão negativista e comprometer a tomada de decisões. “Essa crença pode criar um ciclo vicioso, no qual a expectativa de eventos desfavoráveis se torna uma profecia autorrealizável.”

Como vimos, esta interpretação do que nos acontece está relacionada com a nossa evolução enquanto espécie. Tendemos a lembrar-nos do que correu mal e do que correu bem, porque o cérebro regista essas experiências para evitar perigos futuros ou repetir sucessos. Esse viés é fomentado pela própria mente. Se brincarmos com o fogo, se levarmos um enorme cavalo de madeira para o interior da cidade, após anos de cerco, ou afrouxamos a marcação a Lamine Yamal, futebolista prodígio do Barcelona, é natural que, como diz o povo, estejamos a “pôr-nos a jeito”. O melhor, então, é não o fazer.

Sendo assim, é possível levar uma existência sem um desespero constante, pensando que o pior vai acontecer e não há nada que possamos fazer para o contrariar? O segredo para evitar esta agonia consiste em treinar o cérebro para interpretar o imprevisto de uma forma mais equilibrada. Por um lado, temos de aceitar que o acaso existe. Afinal, “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe”. De seguida, podemos focar-nos em cuidar daquilo que podemos influenciar para reduzir os riscos e aumentar as nossas defesas.

O 13 é um número de azar porquê?

A associação do número 13 ao azar tem raízes antigas e atravessa diversas culturas. Na tradição judaico-cristã, a imagem da Última Ceia, com 13 pessoas sentadas à mesa, contribuiu significativamente para que este número simbolizasse um mau presságio. Entre os presentes havia um traidor e, no dia seguinte, um deles morreria.

Mas a má fama do número 13 pode ser ainda mais antiga. Para os romanos, o número 12 representava a ordem e a plenitude. Existem 12 meses no ano, 12 signos do zodíaco, 12 deuses principais. Acrescentar mais um – o 13 – era quebrar esta harmonia.

A superstição agrava-se quando o dia 13 calha à sexta-feira. Segundo a tradição, a 13 de outubro de 1307, uma sexta-feira, Filipe IV, rei de França, ordenou a prisão dos Cavaleiros Templários. Muitos acabariam por arder na fogueira. Este episódio violento, aliado ao misticismo que envolve os Templários, ajudou a cimentar a ideia de que a sexta-feira 13 é um dia amaldiçoado.

O certo é que, em muitos edifícios e hotéis pelo mundo, o 13.º andar é simplesmente omitido e várias companhias aéreas evitam numerar a fila 13 dos seus aviões. Aqui vai uma dica: se não acredita em superstições e está a pensar viajar, saiba que os bilhetes de avião para uma sexta-feira 13 costumam ser mais baratos.

Ah, e já agora: o nome clínico do medo irracional do número 13 é triscaidecafobia.

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Planear não é adivinhar

Muitas instituições, como associações mutualistas, bancos e seguradoras, recorrem a atuários para traçar o mapa do futuro e conhecer os riscos a que os seus associados ou clientes estão sujeitos. Para estes profissionais, azar é o que acontece fora do previsto. Porque, se foi possível antecipá-lo, é também possível prepararmo-nos para essa ocorrência.

Há 184 anos que o Montepio Associação Mutualista recorre a cenários, estatísticas e projeções para criar soluções que protejam os seus associados nos momentos de maior fragilidade. Teresa Fernandes, responsável pela área de atuariado do Montepio Associação Mutualista, explica que, mais do que ter artes de adivinhação, baseia-se na “matemática, na estatística, em dados históricos e nas probabilidades de ocorrência de determinados eventos, como a morte, a longevidade, doenças, acidentes ou invalidez para avaliar e gerir os riscos”.

“Sabemos que estes riscos podem ter impacto financeiro, tanto para os associados como para a própria instituição. Por isso, queremos encontrar formas de os minimizar”, revela a profissional.

Parece uma frase feita, mas é mesmo verdade: a única certeza é a de que o imprevisível vai acontecer. No entanto, os seus efeitos não têm de ser catastróficos desde que estejamos preparados.

Dois exemplos simples mostram como o planeamento pode fazer a diferença. Não sabemos que doenças nos afetarão no futuro, mas a subscrição de um seguro de saúde assegura o acesso a cuidados médicos. Este acesso, por si só, reduz o impacto da doença.

Do mesmo modo, quem faz uma poupança de longo prazo a pensar no futuro dos filhos cria um fundo que pode ser utilizado para pagar as propinas ou apoiar o arrendamento de uma casa quando chegar a altura da universidade.

Teresa Fernandes admite que, por trabalhar diariamente com números e probabilidades, mudou o modo como também passou a aplicar esse raciocínio na sua vida pessoal. E, neste caso, em casa de ferreiro não há espeto de pau. “Para prevenir uma morte ou invalidez e garantir uma compensação financeira para os meus familiares mais próximos, opto pela modalidade mutualista Proteção Vida.” Como, felizmente, a probabilidade de ter uma vida mais longa é, hoje, maior do que há algumas décadas, “a subscrição da modalidade Pensões de Reforma ajuda-me a garantir uma velhice com mais qualidade”.

Estas decisões não impedem o acaso, mas reduzem drasticamente o seu impacto. “Tiveste a sorte de ter um seguro de saúde”, poderão dizer. Mas fazer escolhas conscientes, avaliando os riscos a que estamos sujeitos, não é sorte, é planeamento.

Warren Buffett, considerado o guru dos investidores financeiros, assume que o sucesso lendário da sua carreira se deve, em parte, ao facto de ter nascido numa família rica e nos Estados Unidos, um mercado amigo dos investidores. Ele próprio chama “sorte” a este fator. Mas milhares de pessoas nasceram nas mesmas condições e não repetiram o sucesso do “Oráculo de Omaha”. O sucesso de Buffett deve-se, também, ao estudo afincado das empresas nas quais pensa investir, à análise dos respetivos balanços, estratégias, fontes de financiamento e capacidade de inovação. Por outras palavras, ele e a sua equipa preparam-se: antecipam, criam cenários, planeiam e tomam decisões informadas. Sabem que haverá crises, guerras, falências e revoluções tecnológicas. Não os encaram como azares. Sabem que faz parte do percurso.

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A reação ao acaso ou como dois minutos podem salvar uma vida

O mundo ficou em suspenso a 11 de abril de 1970. Uma explosão num dos tanques de oxigénio da nave Apollo XIII comprometeu as reservas de oxigénio e de água potável da tripulação. Além disso, a maioria dos sistemas elétricos sofreu danos significativos. Estava em risco a sobrevivência de três astronautas devido a um imprevisto — ou, se quisermos, a um grande azar.

O que definiu o final de uma das jornadas épicas da conquista espacial foi a capacidade de resposta perante o inesperado. Às 18:07 (hora de Lisboa) do dia 17 de abril, o módulo lunar, adaptado à pressa, amarou em segurança no oceano Pacífico com os três astronautas sãos e salvos. Entre os dias 11 e 17, o treino intensivo da tripulação e a experiência da equipa de engenheiros da NASA, em Houston, nos Estados Unidos, permitiram encontrar soluções em tempo recorde para os diversos problemas que foram surgindo. Por isso, a missão ficou conhecida como “um falhanço com sucesso”

Nem sempre será assim. “Acredito que, por ser espanhol e ter aprendido a tomar medidas instintivas de defesa contra atentados, obrigo-me a mudar as rotinas de imediato. Talvez assim tenha evitado que a minha vida ficasse em perigo”, considera Alfonso Alcolea. E se, na véspera do atentado, tivesse furado um pneu da bicicleta? Ou se estivesse a chover? A linha que separa um acaso de uma escolha é, muitas vezes, tão ténue que quase não se vê.

Não podemos prever todos os azares, e certamente não podemos garantir que vamos ter sempre sorte. Mas podemos influenciar o terreno de jogo: preparar-nos, investir na nossa segurança e manter uma atitude aberta e racional perante o inesperado.

Teresa Fernandes, a atuária do Montepio Associação Mutualista, chama a atenção para o facto de nem com um supercomputador e uma imensidão de dados se conseguir reduzir a imprevisibilidade. “Em alguns casos, podemos calcular a probabilidade de ocorrência de eventos futuros com base na observação e recolha de dados de eventos semelhantes ocorridos no passado. É muito importante informar as pessoas do risco de ocorrência de eventos imprevisíveis, ou de um azar, se assim o quiserem chamar. Depois há que informá-las sobre as soluções disponíveis para que possam preparar-se para colmatar ou atenuar os eventuais efeitos negativos destes episódios.”

Há algo reconfortante em saber que, mesmo sem controlar o futuro, podemos estar bem preparados para enfrentá-lo. “Cultivar uma atitude positiva e aprender com as experiências negativas pode transformar a perceção do que é o azar em oportunidades de crescimento pessoal e ajudar a reduzir a ansiedade e a frustração associadas a eventos infelizes”, conclui a psicóloga Ana Rita Silva.

Uma coisa é certa: venha a sorte ou o azar, como reagimos no momento seguinte é sempre uma escolha. E estas dependem, isso sim, exclusivamente de nós.

4 acasos que mudaram o curso da História. Foi sorte ou azar?

Há acontecimentos cujas consequências só se tornam evidentes alguns anos – ou até séculos – depois de ocorrerem. Mas estes acasos da História revelaram-se capazes de alterar o destino da Humanidade. Foram golpes de sorte ou azar? Faça as suas escolhas.

O erro de Colombo

Na última década do século XV, Cristóvão Colombo partiu de Espanha com uma frota de três caravelas – a Pinta, a Nina e a Santa Maria – com destino às Índias. Acreditava que, navegando para ocidente, chegaria a este continente. No entanto, as suas estimativas sobre o tamanho da Terra estavam erradas e, teoricamente, a missão estava condenada ao fracasso. Contudo, acabou por chegar a terras então desconhecidas para os europeus da época: a América. Foi um erro de navegação que mudou o curso da História.

A maçã de Newton

Conta-se que o filósofo e cientista inglês Isaac Newton descansava à sombra de uma macieira quando uma maçã lhe caiu no colo. A observação deste acontecimento, aparentemente banal, despertou-lhe uma dúvida fundamental: que força obrigaria o fruto a cair? A partir daí, Newton formulou a teoria da gravidade universal, reconhecendo a atração mútua entre corpos com massa. Verdade ou mito, este acaso originou uma das maiores revoluções científicas da Humanidade.

A morte de Francisco Fernando

Em 1914, a Europa fervilhava de tensões políticas e sociais. O arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, sobreviveu a um primeiro atentado bombista, levado a cabo por nacionalistas bósnios. Mais tarde, a sua comitiva alterou o trajeto e cruzou-se, por acaso, com um dos principais conspiradores, Gravilo Princip. Este não hesitou e assassinou o arquiduque com dois tiros de pistola.

Este gesto foi o rastilho para uma das maiores tragédias de sempre da era moderna. Poucas semanas depois, a complexa teia de alianças entre potências europeias mergulhou o continente na Primeira Guerra Mundial, um conflito que ceifou 20 milhões de vidas.

A descoberta da penicilina

Em 1928, o cientista inglês Alexander Fleming partiu de férias e deixou, por descuido, uma cultura de bactérias no seu laboratório em Londres. Em vez de a guardar no frigorífico, esqueceu-se dela na bancada de trabalho. Ao regressar, reparou que a placa estava contaminada por um fungo do género Penicillium que inibia o crescimento das bactérias.

Assim nasceu, por acaso, a penicilina, o primeiro antibiótico eficaz e que revolucionaria a medicina e salvaria milhões de vidas nas décadas seguintes.

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