“Lutei demasiado para ser uma mulher livre e com voz”

“Lutei demasiado para ser uma mulher livre e com voz”
15 minutos de leitura
Fotografia de Maria João Gala
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Carolina Deslandes recebeu a revista Montepio exatamente seis horas antes de subir ao palco, no Porto, para um concerto há muito esgotado. Uma semana antes, a jovem de 32 anos tinha atuado pela primeira vez no maior palco de Lisboa (e do País), naquela que considerou “a maior noite” da sua carreira.

Sentada no sofá do seu camarim, de pensamento rápido e resposta na ponta da língua, Carolina Deslandes falou do novo álbum, Calma, mas também da indústria discográfica, a nova geração de músicos e a sua relação com o dinheiro.

Caos e Calma são conceitos antagónicos. Como chegaste a eles no período de oito meses?

Muitas das canções do álbum Calma foram compostas durante a primeira leva da pandemia, antes de me separar. Nessa altura, estava também a trabalhar noutro projeto, a curta-metragem Mulher, que saiu durante a pandemia, e ficámos todos um bocadinho com tudo o que era trabalho artístico on hold.

Quando volta a ser altura de lançar música, essas canções já não estavam em concordância com o meu estado de espírito e com tudo o que tinha acontecido na minha vida. E senti que ia lançar um disco a fingir, porque aquilo era outra fase da minha vida, outras coisas, outras vivências. Precisava de escoar o que estava a sentir no pós-pandemia para algum lado. Comecei a fazer o álbum Caos e tornou-se muito óbvio que precisava de uma sonoridade um bocadinho mais zangada.

E por que razão optaste por lançar agora o Calma?

Quando acabei de fazer o alinhamento do Caos, pensei: e se lançar dois discos? Os dois sou eu, são só fases diferentes da vida. Decidi chamar a um Caos e ao outro Calma, porque os discos têm sonoridades opostas e a minha vida estava em fases opostas. Acho graça a isto de abdicar de lançar as canções felizes, porque não me serviram na altura, para lançar as canções zangadas. Mais tarde, quando volto a pegar nessas canções, elas já fazem sentido outra vez. A vida é mesmo este ciclo: já não estou no lugar zangado e estou tranquila, já não tenho de fingir.

Alguma vez pensaste em lançar um álbum duplo?

Lancei os álbuns em períodos de tempo separados, mas em formato físico são capa e contracapa de um álbum duplo o que, aliás, já ninguém faz. Mas eu adoro álbuns duplos, sempre adorei, era obcecada pelo álbum Ao Vivo, do Rui Veloso. Hoje em dia, se alguém comprar um álbum físico, é porque é colecionador ou aficionado de música. E quanto mais músicas o álbum tiver, melhor. É o que eu acho.

Nos concertos de Carolina Deslandes não há tempo para descansar. Num dos últimos do ano, no Porto, a compositora cantou 22 músicas, incluindo três no encore

No concerto de Lisboa (a 30 de novembro de 2023), cantaste com Diogo Piçarra, Bárbara Tinoco, AGIR e Soraia Ramos. Aliás, é habitual fazeres duetos. A tua geração é unida?

Sim. Vivemos mais em comunidade do que as gerações anteriores, que eram um pouco mais separadas. E isso acontece, muito provavelmente, por causa da indústria [discográfica], que tem uma forma quase silenciosa de nos convencer que ninguém quer o nosso bem e que devemos trabalhar o nosso sucesso, a nossa vida e a nossa pessoa. É um movimento muito egocêntrico. Acabamos por compor uns com os outros, uns para os outros, por nos juntarmos em estúdio formamos amizades. Esse ruído exterior não tem efeito nenhum, pelo menos para mim.

Achas que é uma coisa que aparece de 20 em 20 anos? Na década de 1970 o Zeca, Sérgio Godinho e Zé Mário Branco compunham juntos. Na década de 1990, Jorge Palma, Rui Veloso, João Gil e o Tim fizeram-no. O espírito é o mesmo?

Para nós foi muito difícil que a geração anterior à nossa colaborasse connosco, o que me deixava muito triste.

E por que razão isso acontece?

Não sei. Acho que os mais velhos têm a máxima de “tens de provar que não vais durar um verão”. Até acho um desafio giro e engraçado. Esta coisa dos duetos entre os mais velhos e os mais novos abriu-se quando fiz a música Avião de Papel com o Rui [Veloso]. Até esse momento, não havia histórias de artistas a trabalharem com artistas pop mais jovens.

E logo o Rui Veloso.

É o meu artista de referência desde que sei cantar.

Nos anos 90 começaram a aparecer os supergrupos: Resistência, Rio Grande, Cabeças no Ar. Vias-te a fazer algo igual com os músicos da tua geração: Fernando Daniel, Diogo Piçarra, Bárbara Tinoco… Um projeto para lançar um álbum?

Sou completamente apaixonada pelos Cabeças no Ar. Há uma canção desse álbum, Orlando de Vez em Quando (e que por acaso é a canção favorita dos meus filhos e é por causa dela que o meu cão se chama Orlando [risos]), que percebemos que é o Jorge Palma que está a interpretar mas a música não é dele. A letra é do Carlos Tê e a melodia é do Rui Veloso. Acho isso muito bonito. Podemos compor uma melodia para uma letra e saber que não somos a pessoa que melhor vai servir a canção. E para conseguirmos chegar a esse lugar é preciso termos a humildade de não sentir que dar ao colega é perder o lugar. Eu tenho essa visão das coisas. Para mim, quanto mais repartimos a arte, mais multiplicamos. Um supergrupo? Não sei. Mas vejo-me a trabalhar com a Bárbara Tinoco e acabámos de fazer a banda sonora do nosso musical, absolutamente em conjunto. É a primeira pessoa com quem componho em conjunto, tirando o Diogo Clemente.

Como compõem juntas?

À guitarra. Normalmente, está um guitarrista a tocar e eu digo: “Tenho verso.” Ela diz-me: “Tenho pré-refrão, canta lá o teu verso.” Eu canto o verso, mas só tenho meio, por exemplo uma quadra. Ela pega na segunda parte do verso que eu já comecei, e eu pego no refrão a seguir ao pré-refrão que ela já escreveu. Eu tenho a melodia do meu verso, e ela do dela. É uma coisa muito estranha.

Hoje de manhã tinhas 375 mil ouvintes mensais no Spotify. A Amália tem 175 mil e o Zeca Afonso 36 mil. Estes números dão-te mais responsabilidade para criares grandes músicas no futuro ou nem pensas muito nisso?

Não vou ver esses números. Lancei o meu primeiro disco há 13 anos e essa parte da música é muito nova. Esta coisa das tendências do YouTube… Por exemplo, a Bárbara, sendo a minha melhor amiga, tem menos sete anos que eu. A Bárbara Bandeira, para quem eu escrevo e componho, tem menos 10 anos que eu. De certa forma, estou em terra de ninguém. Nem sou dos mais velhos mas também não sou dos mais novos. Quando comecei a fazer música não havia tendências do YouTube, números de streams. Havia discos de platina ou de ouro. Nem sequer havia single de platina. Acho muito fixe que sejam celebrados os pequenos passos, e não só os grandes, porque a carreira é uma soma de pequenos passos. Mas se formos só para os números… a arte não é matemática, não pode ser. Cada coisa no mundo ocupa o seu papel. Há pessoas que fazem muito bem contas, e ainda bem que elas existem, salvam-me a vida, porque eu faço-as mal. Por isso, quando penso na minha música, não quero pensar em números. As músicas não têm todas os mesmos resultados, porque isso vai dar uma sensação de derrota ou falsa sensação de vitória.

Mas não é isso que te faz correr.

Por exemplo, quando estou em Freixo de Espada à Cinta e as pessoas estão a cantar comigo, para mim isso é uma canção bem sucedida. E se calhar não tem tantos streams como outras. A Amália e o Zeca não têm tantos ouvintes mensais, nem tantos streams, porque há uma geração que, se calhar, não os ouve. Mas se começarmos a cantar as músicas Grito, Estranha Forma de Vida ou Sou Filha das Ervas todos cantam, mas não sabem de onde. Ou então o Venham mais Cinco, Canção de Embalar, Vampiros. As pessoas cantam, mas não sabem de onde conhecem as canções. Estas são as canções que marcaram a história da nossa música. Eu ainda não sei se o que fiz vai deixar marca, só o saberei daqui a muitos anos. Ou os meus filhos e os meus netos. Isso, para mim, é a prova de que os números não são a realidade, porque tenho devoção por esses artistas que não têm números correspondentes ao que simbolizam culturalmente.

Achas que a indústria discográfica avançará para uma lógica comercial que tornará os álbuns obsoletos? Que levará os artistas a editarem uma música por mês para permanecerem mais tempo nos tops e músicas até três minutos para não aborrecerem?

Já avançou, é o reflexo dos tempos. Eu comprava discos para ouvir. Abria-os, sublinhava-os e deixava-os tocar após a última música, para ver se havia faixas surpresa. Não havia 100 músicas a sair por semana, apenas cinco discos por mês. E ficávamos a consumir aquilo. A minha irmã Matilde [sete anos mais nova] já não compra discos. Ela prefere que os artistas vão lançando canções todos os meses, em vez de estar à espera do disco. Se isso serve para uma geração da qual eu não faço parte, entendo. Se vou sucumbir a isso? Provavelmente, não. Para mim, é outra coisa. Mas não acho mal que, para as outras pessoas, não seja. É a realidade que conhecem.

A meio da tarde, era muita a azáfama junto ao camarim de Carolina Deslandes. A maquilhagem é a última etapa antes de subir ao palco

O que achas do ressurgimento do vinil?

É das poucas coleções que faço. Ainda é uma coleção pequena, mas muito boa. São coisas que adoro. O meu gira-discos está permanentemente ligado. O ritual, o granulado… é completamente diferente. E não precisa de ter o bluetooth, que se calhar não conecta, ou wi-fi, que até tem um sinal fraco… isso dá-me tudo nervos. Quero abrir o disco e pô-lo a tocar. Basta ter eletricidade em casa para ouvir um vinil.

Como é que a sobre-exposição mediática e a reação que provocas no público inspira, ou afeta, a tua composição? As letras, a melodia.

Há tempos para tudo. Às vezes, não vestimos uma roupa porque temos medo que gozem connosco na escola. É o mesmo com a [sobre-exposição na] Internet. Há tempos que somos vulneráveis e frágeis, somos mais jovens e choramos se gozarem connosco. Mas depois crescemos. E pensamos: “O que poderão gozar comigo é mais importante do que eu ter esta opinião?” Não é. Abdicar de ter opinião e da nossa individualidade com medo de uma reação é o mais próximo que estamos de uma ditadura. A vontade de repressão externa não é maior que a minha liberdade. Lutámos demasiado para chegar aqui, e eu lutei demasiado para ser uma mulher livre e com voz.

E costumas dar a tua opinião.

Falo do que considero importante. Sou uma pessoa informada e, se falo, informei-me [sobre o tema]. O exercício da democracia é isso. Posso ter uma ideia e tu teres outra, e podemos debatê-la. Não temos de nos ofender porque temos ideias diferentes. Hoje em dia sou mais recatada na partilha das minhas opiniões e da minha vida, mas não é porque tenho medo. É porque acho que, muitas vezes, há lugares onde podemos escolher e sentimos que merecemos o esforço da comunicação, e há outros onde vamos entrar a perder.

Tens um milhão de seguidores no Instagram. É 10% da população portuguesa. Sentes-te poderosa?

Epá, não [risos]. Digo isto muitas vezes: quando temos filhos pequenos, é muito difícil sentirmo-nos poderosos. Ou diva ou estrela. Eu tenho um grande problema com o palco, deixa-me muito nervosa. Pode ser este, no Porto, o da casa da minha mãe ou o da Feira do Chouriço, o que for. Fico nervosa em todos.

Vou contar-te uma história. Estava mesmo muito nervosa no concerto de Lisboa, e passei muito mal. E os meus filhos entraram para o palco na última canção. No fim do concerto, ainda de phones, a ouvir o barulho do público, entrei no corredor e o barulho foi desvanecendo. Entro no meu camarim e pego numa mala que trago sempre [para os concertos] para decorar o camarim como o meu quarto: com os meus livros, os meus discos, as minhas fotografias. Para mim é importante, porque acalma-me. E os meus filhos viram que tinha levado o Uno do Harry Potter, que jogamos lá em casa. Assim que entrámos no camarim, perguntaram-me se podíamos jogar um jogo. Sentei-me no chão e comecei a jogar com eles. E o Filipe, que está a filmar o meu novo documentário, disse-me: “É inacreditável. Vieste do auge que se pode ter ao nível de palcos para jogar sentada no chão.” Isso dá-nos uma noção de que isto é o momento. As coisas são um momento.

É outro tipo de poder.

Para mim, ser poderoso é viver a vida que eu quero, dar a vida aos meus filhos que eu gostava de dar e trabalhar feliz. Acho que já é um poder enorme. Tenho tanta gente ao meu lado que foi para a faculdade, está num trabalho de que não gosta, é mal paga… Olho e vejo tanta gente com sonhos por cumprir, com coisas por dizer. O meu poder é esse: sentir coisas e poder fazer canções com elas. Ter um milhão de seguidores, o que é que isso significa? Gosto genuinamente de comunicar e de partilhar [coisas] com a malta. Venho da [era da] Internet, comecei a tocar na rádio porque as pessoas pediram às rádios para eu tocar. Mas acho o poder muito perigoso, essa sensação de soberba, acho perigoso e espero nunca cair em tentação.

Antes dos concertos, Carolina Deslandes recria o ambiente de casa: fotografias, livros, discos de vinil e outros objetos pessoais são presença habitual no camarim

Carolina e o dinheiro

Pensas na tua vida financeira dentro de 15 ou 20 anos? Tentas poupar para essa altura?

Adorava dizer-te que sim. Não sou, de todo, a pessoa mais poupada, mas porque invisto artisticamente muito do dinheiro que ganho. E também tenho filhos. Mas quero poupar e cada vez tento poupar mais.

A maternidade, aliás, a tripla maternidade, fez-te mudar a relação que tens com o dinheiro?

Fez, claramente. E com o trabalho. Fez-me querer fazer mais e agir de outra maneira, naturalmente. Por exemplo, no tipo de casa que comprei a pensar neles. Deixei o centro de Lisboa e mudei-me para os subúrbios, onde o nível de vida é mais barato. Nunca tive a obsessão pop star de fazer uma extravagância. Nem em casar pensei. Não vou gastar aquele dinheiro numa festa [risos].

Há muitos profissionais, e muitas famílias, que dependem de ti, do teu sucesso, para a sua própria vida. Sentes-te financeiramente responsável por eles?

Claro que sim. Por isso é que, por vezes, há sugestões para fazer dois concertos num dia e eu sei que me sai do pêlo mas aceito. Enquanto houver trabalho para mim, há trabalho para todos. Somos uma família e sempre que aumenta para mim, aumenta para todos. É assim que funciona e é assim a minha política. Existo porque eles existem, e não o contrário. São eles que fazem os arranjos, são eles que tocam, que me puxam para cima. Funcionamos com uma equipa… se quiseres, eu sou a marcadora. Se puder proporcionar mais ocasiões para ganharmos dinheiro, vou fazê-lo.

Se apenas vivesses com o dinheiro que ganhas no YouTube, Spotify, iTunes e outras plataformas de streaming, além da venda de CD, conseguias estar na música?

Não tenho bem a certeza. Os direitos de autor e os streams são uma fatia valiosa, mas dizer a uma pessoa que está a começar que só com isso é possível viver da música é enganá-la. O que pagam é muito pouco. Não vão por aí.

Os concertos de Lisboa e do Porto terminaram com Não me Importo que, segundo Carolina Deslandes, é a música favorita do público

10 perguntas-relâmpago a Carolina Deslandes

Em dia de Tempestade, foi Por um Triz que esta entrevista não se realizou, mas conseguimos empurrar Carolina Deslandes, e a sua Saia [da Carolina], para um Avião de Papel que sobrevoou as Estrelas da sua vida. Agora, descobrimos que recebeu conselhos que são para A Vida Toda e o que faz quando chega a Casa. Sem tempo para Respirar, Carolina respondeu a tudo com a Paz de quem já superou o Trauma do Abandono.

1. O que fazes quando passa uma música tua na rádio?

Se estiver com amigos próximos até acho graça, fico sempre com aquela sensação de que é a primeira vez que estou a passar na rádio. Se estiver num sítio com muita gente desligo porque tenho vergonha.

2. Qual é a tua música que o público mais gosta?

Não me Importa, que é a música mais streamada que tenho até hoje e que continua a crescer. Incrível, não é? Era de esperar que fosse A Vida Toda, mas não é.

3. Que canção compuseste em menos tempo?

A canção Por Um Triz.

4. Quem te deu o melhor conselho no mundo do espetáculo?

O Pedro Abrunhosa. Liguei-lhe depois de lançar o álbum Casa e disse-lhe que estava a sentir uma pressão enorme para o próximo disco, que achava que não ia conseguir corresponder. Ele disse-me: “A única coisa que tens de fazer é dizer a tua verdade. O que vier depois é consequência.” Este conselho desbloqueou a minha vida artística.

5. Se o Carlão, Fernando Daniel, Marisa Liz ou Bárbara Tinoco tivessem dez anos, de quem gostarias de ser mentora?

Da Bárbara Tinoco. É um talento fora de série, existe um destes de 100 em 100 anos, se é que vai haver outro. Acho-a muito interessante artisticamente, muito criativa, uma compositora, intérprete, produtora. Não é por ser minha amiga, mas é espetacular.

6. Nas entrevistas, qual a pergunta que mais te fazem?

Como concilias a tua vida pessoal com a tua vida profissional?

7. Qual foi o primeiro álbum que compraste?

Nevermind, dos Nirvana.

8. Qual foi a coisa mais cara que compraste?

A minha casa.

9. Quando chegares a casa, depois deste concerto, qual a primeira coisa que vais fazer?

Acender a lareira.

10. O sucesso é para a vida toda?

Não faço ideia. Mas fazer canções há de ser.

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