um mundo dominado por vídeos curtos, redes sociais e informação simplificada e instantânea, a leitura tradicional de livros, jornais e revistas parece estar cada vez mais ausente. O que acontece ao pensamento crítico, à imaginação e ao conhecimento quando os livros cedem lugar ao audiovisual? E qual o impacto que a informação simplificada tem no pensamento e no desenvolvimento cognitivo?
Escrever sempre foi uma ferramenta importante para Ana Markl se organizar interiormente. “Esta sensação de que precisava de extravasar, de alguma forma, as coisas que me passavam pela cabeça. Tinha um cérebro muito ruidoso e uma certa timidez que não me permitia abrir com as pessoas à minha volta. A escrita foi o meu processo de autoconhecimento”, diz, referindo-se aos diários da sua adolescência que agora resgatou e partilhou. “Para mim, foi a melhor amiga e essencial para adquirir consciência emocional.”
Ao ler o que foi escrevendo durante a década de 90 do século passado, a Ana adulta, de 45 anos, concluiu que “tinha mais inteligência emocional do que [se] lembrava”. Deste processo de redescoberta dos diários nasceu o diálogo imaginado entre a Ana adolescente e a adulta, que está na base do livro Do Outro Lado do Tempo – e se Pudesses Ouvir o Teu Futuro? (Nuvem de Letras, 2025).
“Ao escrever, pensamos melhor”, afirma a radialista e comunicadora. Acrescente-se “ao ler, pensamos melhor”, que também é uma afirmação feita pelos professores entrevistados neste artigo e que respondem à pergunta: que papel estamos a reservar à leitura e à escrita numa sociedade hipermediatizada?
REVISTA MONTEPIO
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Um smartphone em substituição da brincadeira
No início deste ano letivo, o professor Ruy Ventura ainda refletia nos trabalhos de escrita criativa que tem por hábito pedir aos seus alunos. Professor de Português no 2.º ciclo (5.º e 6.º anos) numa escola de Setúbal, tem encontrado, entre as histórias que pede como TPC (trabalho para casa), o “fenómeno de trabalhos demasiado perfeitos ou com vocabulário que eles não conhecem e que são escritos pelo ChatGPT”. Chegou a aparecer-lhe um trabalho de pesquisa todo escrito em galego, porque o aluno fez copy paste da pesquisa na internet e não leu o que copiou, conta o docente.
Setembro de 2025 marcou uma diferença nas escolas, com a proibição imposta em Portugal do uso dos telemóveis por parte dos estudantes até ao 2.º ciclo. “Hoje em dia, uma das coisas mais aflitivas de ver num pátio é os miúdos não interagirem. Sentam-se pelos cantos, com o telemóvel na mão”, descreve Ruy Ventura. Intelectual e professor há mais de três décadas (com alguns anos, também, como docente nas áreas da Literatura no ensino superior, em Coimbra), começou a fazer um exercício com os alunos: no intervalo, todos (professor incluído) deixam o telemóvel na sala, que fica com a porta trancada. “Os miúdos não pareciam os mesmos, começavam a brincar como sempre se brincou”, conta.
O neuropsicólogo Bruno Peixoto sublinha que o tempo passado em frente ao ecrã reduz de forma significativa a realização de outras atividades fundamentais para o desenvolvimento, como brincar, a leitura e a atividade física.
“Estudos recentes apontam, de facto, para a associação entre níveis elevados de exposição ao ecrã e dificuldades de atenção. O uso excessivo de ecrãs está associado à redução da eficiência e conectividade em regiões do cérebro responsáveis pelo controlo cognitivo e atenção, particularmente o córtex pré-frontal e as suas conexões com estruturas subcorticais. Estes sistemas de atenção são fundamentais para o desenvolvimento de outras funções cognitivas, como a aprendizagem e as capacidades para planear, controlar e adaptar o comportamento. Ou seja, o impacto não se verifica apenas no domínio da atenção”, explica o também diretor do departamento de Ciências Sociais e do Comportamento no Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU (ver caixa). Nas crianças em idade pré-escolar, o uso de ecrãs “tem sido relacionado com alterações na integridade de vias cerebrais implicadas na emergência de aptidões linguísticas”. Além de consequências no sono, no bem-estar psicológico, o uso excessivo de ecrãs está relacionado com a solidão e outras emoções negativas.
O caminho até à sociedade dos ecrãs
Há mais de uma década, em 2013, o livro A Sociedade dos Ecrãs (Tinta da China, coordenação de Gustavo Cardoso) traçava já um conjunto de mudanças introduzidas pelos telemóveis, tablets ou outros meios eletrónicos. Na altura, a televisão tinha uma expressão maior do que nos dias de hoje, mas outros suportes ofereciam já “formas alternativas de consumo de programas televisivos” ou que apresentavam outras narrativas.
E, de acordo com os investigadores das áreas das Ciências Sociais e da Economia que colaboraram nesta obra, quais as consequências do aumento da influência dos ecrãs nessa época? Por um lado, a diversificação de conteúdos e individualização nas escolhas – ou seja, a entrada numa era do “eu”; por outro, “a perda da centralidade da cultura e espaço privados associados ao agregado familiar e à casa”.
Os livros continuam a sair das prateleiras das livrarias e hipermercados – de 2023 para 2024 houve um aumento de 9% no mercado editorial nacional, de acordo com a auditoria feita pela Gfk para a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). Mas o número de leitores entre os jovens portugueses acima dos 16 anos está abaixo da média europeia, diz o Eurostat. E tanto a percentagem em Portugal (58% afirmavam ao Eurostat ter lido zero livros no ano de 2022), como a da Europa (47%), devem servir de alerta.
A venda de jornais e revistas segue uma tendência descendente. Em 20 anos, Portugal perdeu mais de metade dos media impressos. Se, em 2002, estavam registados 2 107 títulos, em 2022 eram apenas 840, de acordo com um levantamento da Marktest. Os pontos de venda também diminuíram, encerrando-se quiosques e papelarias que eram fundamentais no acesso diário a estes meios. E o digital ganhou preponderância.
Para se tentar conquistar mais público entre os jovens, combater a desinformação que circula nas redes sociais e promover o espírito crítico, foi criado um programa nacional de oferta de assinaturas digitais para jovens entre os 15 e os 18 anos. Até 31 de dezembro de 2025, quem tem entre os 15 e os 18 anos (idades equivalentes à frequência do ensino secundário) pode inscrever-se para, durante dois anos, aderir à assinatura digital de uma publicação periódica nacional generalista ou económica. Pretende-se também apoiar os órgãos de comunicação social tradicionais, que vão lançando alertas nas notícias: “Distribuição de jornais encolhe em Portugal e continua a gerar preocupação”, titulava o jornal Expresso a 3 de junho de 2025; “Crise na imprensa escrita: jornais e revistas em risco de desaparecer em algumas regiões”, informava a SIC Notícias na mesma data.
A escola tem um papel crucial em tudo isto. Mesmo entre as pessoas que se assumem como “não leitores”, 40% referem, num estudo da APEL (“Hábitos de Compra e Leitura em Portugal, apresentado em setembro de 2025), que a escola é essencial para reforçar os hábitos de leitura adquiridos em casa.
Adaptar-se aos gostos dos mais jovens pode ser um bom truque. Andreia Dâmaso recorda-se de um aluno que “detestava ler, mas adorava futebol”. A professora começou então a estimular o pensamento crítico dele através dos jornais desportivos. Liam os artigos e debatiam o que era verdade e o que era especulação.
A professora do 1.º ciclo no Barreiro aponta diferenças entre os seus alunos de há 18 anos, quando começou a ensinar, e os de hoje, que têm uma evidente maior propensão para as tecnologias. “Eu chamo-lhes a geração do click. Eles resolvem tudo num click e não conseguem ter tempos de espera, de compreensão de que o outro não tem a mesma velocidade de pensamento. Toda esta velocidade da tecnologia está a prejudicar a capacidade de resiliência, de espera, de pensamento crítico e de concentração”, refere. A docente, de 40 anos, acrescenta: “Na leitura, nota-se quem está mais tempo ao ecrã e quem faz noutro tipo de tarefas, quem está habituado a ouvir uma história, a ler, tem um pensamento crítico mais desenvolvido e maiores capacidades de interpretação.” Essa é uma diferença clara em exercícios relacionados com notícias verdadeiras e fake news. É que ler é descodificar e muitos não conseguem ter ferramentas para questionar.
O que leem os portugueses?
“Um livro é um sonho que seguramos nas mãos”, escreveu um dia o britânico Neil Gaiman, autor de algumas das histórias mais imaginativas das últimas décadas e reconhecido pela ficção ligada à mitologia, ao folclore e à fantasia. Conheça alguns dos dados mais recentes sobre a ligação dos portugueses aos livros.
- 5,3 livros lidos, em média, no ano de 2024
- 3 277 957 livros foram vendidos no segundo trimestre de 2025
- 38,5% das vendas eram de literatura infantojuvenil
- 32,9% das escolhas foram de ficção
- 25% da área de não-ficção, de acordo com os dados recolhidos pela Gfk para a APEL
Ecrãs em modo q.b.
Nem muito, nem pouco. Os ecrãs existem, mas os pais devem estar presentes para intermediar – ou, como diz Ana Markl, para “fazer a curadoria”. Enquanto mãe de um menino que entra agora para o 1.º ano, Ana sabe que tem de aprender a integrar as novas solicitações e estímulos numa vida saudável, “com saúde mental, com amor, com acompanhamento”.
“A única forma de controlarmos é sermos aliados. Às vezes, deparo-me com pais de adolescentes que não sabem quem é o Andrew Tate, um brain rot ou o Roblox. Há uma série de fenómenos juvenis que temos de acompanhar. São coisas que parecem inocentes, mas que acarretam imensos perigos. Aquilo que derrete o cérebro dos miúdos, a estupidificação, é que me aflige. Vai ficar tudo muito estúpido no futuro se os entregamos às amas digitais”, refere. Analisando o tempo dos desenhos animados de quando era criança e os de hoje, vê que há um ritmo mais rápido e narrativas mais pobres. São, diz, “injeções de dopamina constantes” numa indústria de brinquedos e de desenhos animados que “estupidifica” quando há “tanto para explorar na imaginação das crianças”.
Em vez do estímulo constante, nomeadamente através dos ecrãs, é bom que os mais novos percebam que parar é bom. “Os miúdos habituam-se a esta rotina: ou têm o telemóvel na mão ou é uma seca. Faço questão de que o meu filho apanhe grandes secas. Quando me diz, numa viagem ‘não tenho nada para fazer’, respondo ‘olha pela janela’.” Também é importante, diz Ana Markl, manter o diálogo com eles e estar atento àquilo que eles dizem. “Às vezes, parece que o meu cérebro está a derreter quando ele fala de pokémons sem parar.” Mas aquele bocadinho de conversa, procurarem juntos livros sobre o tema, “cria um clima de diálogo” e de partilha que é muito importante.
“É alarmante a forma como as tecnologias são utilizadas para ‘entreter’, acalmar e recompensar os mais novos”, alerta, em jeito de conclusão, o neuropsicólogo Bruno Peixoto.
REVISTA MONTEPIO
As bandas de música são coisa do passado?
“Este é um processo que deve começar em casa”
Conheça as dicas do neuropsicólogo Bruno Peixoto, diretor do departamento de Ciências Sociais e do Comportamento no Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU, para que os nossos filhos adquiram pensamento crítico.
Enquanto docente no ensino superior, nota esta dificuldade de atenção nos alunos? Como se pode contrariar?
Sim. Os ecrãs e, sobretudo, a brevidade e velocidade das atividades efetuadas no uso dos dispositivos entram em cena, mas não são os únicos atores. A investigação indica que a atenção em estudantes universitários (e de outros níveis de ensino) varia de acordo com as atividades em sala de aula e o contexto pedagógico. Níveis elevados de ansiedade social e/ou relacionada com as avaliações também estão associados a um pior controlo da atenção.
Estudos neurofisiológicos apontam que a atenção aumenta durante as atividades iniciadas pelos estudantes em comparação com as iniciadas pelos professores, indicando que o envolvimento e o contexto desempenham um papel significativo na atenção. As metodologias participativas (role playing, resolução de problemas, aprendizagem baseada em casos, etc.) são frequentemente utilizadas e, na minha opinião, com bastante sucesso.
Há uma relação nos mecanismos cerebrais entre as dificuldades de atenção e desenvolver o pensamento crítico?
A utilização excessiva de ecrãs, em particular quando envolvem várias tarefas em simultâneo ou o consumo passivo de informação, está associada a um pior funcionamento executivo, incluindo memória de trabalho, inibição e flexibilidade cognitiva – que são habilidades fundamentais para o pensamento crítico. Estas funções estão relacionadas com os circuitos do córtex pré-frontal.
Os métodos de ensino e de avaliação baseiam-se frequentemente na assimilação e reprodução de conhecimentos, muitas vezes tendo por base exclusiva o método expositivo, no qual não é requerida a participação ativa do estudante. Estas metodologias não propiciam o desenvolvimento do pensamento crítico. Há muita dificuldade, em casa e na escola, em promover e valorizar a análise crítica e o pensamento divergente.
A solução é fazer uma “dieta de ecrãs” (definindo número máximo de horas em função da idade) ou proibir em absoluto?
Proibir dificilmente será o caminho. As tecnologias digitais oferecem oportunidades e instrumentos muito úteis na perspetiva educativa, cultural e de interação, assim como o entretenimento. É fundamental o aumento da consciencialização em relação aos padrões de uso abusivo dos ecrãs (uso automático, rotina desregulada, procrastinação digital, etc.), independentemente do aparelho. Nesse processo, a definição de períodos para o uso das tecnologias, a priorização de outras atividades e a restrição de notificações podem ser algumas das ações a implementar – por todos. Urge referir que uma importante forma de aprendizagem do ser humano é a observação do comportamento dos outros (aprendizagem vicariante), pelo que o comportamento dos adultos, pais e professores é determinante. Este é um processo que deve começar em casa.