uando o Estado e o setor privado não chegam a todos, quem protege as pessoas? Há séculos que o mutualismo dá esta resposta, sobretudo nos momentos em que mais precisamos. Conheça um pouco da história deste movimento e descubra como pode continuar a apoiar-nos nos desafios dos próximos anos.
No dia 20 de dezembro de 1916, na Assembleia Geral do Montepio Geral – Associação Mutualista, José Augusto Moreira d’Almeida, Associado n.º 7 536, apresentou uma proposta que recomendava o pagamento, durante o ano de 1917, de um “bónus aos pensionistas pelo encarecimento de vida, em face das reservas estatutárias e do excesso de receitas provenientes do aumento dos câmbios e de outros rendimentos”.
Estávamos em plena Primeira Guerra Mundial e a proposta, que era extensível aos colaboradores do Montepio, foi recebida com renitência pela direção. “Constitui um mau precedente”, pode ler-se na ata dessa reunião, que em breve pode ser consultada no museu virtual do Montepio Associação Mutualista. “A única forma de atribuir aumentos às pensões está determinada no ponto único do art.º 39 dos Estatutos. É chegado o momento de aumentar as pensões?”, pergunta o redator do texto, em nome da Direção, abrindo a porta para o aumento das pensões na Assembleia-Geral que se realizaria um ano depois, em dezembro de 1917.
Se não conhecêssemos o Montepio Associação Mutualista, que em 2025 celebra 185 anos de história, bastariam estes dois parágrafos para entender a lógica mutualista: prudência e solidariedade. Prudência na forma como a Direção reage ao pedido de bónus – “contraria os Estatutos” – e solidariedade no momento seguinte, quando o redator afirma: “Podemos aumentar as pensões” da maneira correta.
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A democracia que chegou antes da liberdade
Um movimento com 850 anos
Fungalvaz, concelho de Torres Novas. Foi aqui que, em maio de 1176, durante o reinado de D. Afonso Henriques, foi fundada uma das primeiras organizações mutualistas em Portugal, a Confraria de Fungalvaz. Contudo, só no século XIX é que o movimento mutualista ganhou forma e surgiram instituições capazes de resistir ao teste do tempo, entre as quais se destacou o Montepio Associação Mutualista, que é hoje a mais relevante e bem-sucedida instituição mutualista portuguesa, referência nacional e europeia.
“[O século XIX] é o tempo das instituições de progresso social, como é o caso do Montepio Associação Mutualista, que oferecia aos funcionários públicos uma nobreza de proteção social então inexistente”, afirma Álvaro Garrido, historiador e Professor Catedrático na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Esta forma de proteção social auto-organizada ajudava a reduzir os riscos de viuvez ou invalidez. “Deste modo, em caso de infortúnio, as pessoas eram condenadas a uma vida miserável, privada da dignidade humana. Foi um marco importante e o Montepio esteve na vanguarda das soluções sociais do século XIX”, acrescenta.
Neste século, muitas outras organizações mutualistas foram criadas, incluindo para proteger artistas ou trabalhadores dos ofícios que sempre tiveram vidas precárias. Com proteção régia e o contributo doutrinário de grandes intelectuais, como Alexandre Herculano, o Montepio Geral prosperou, na opinião de Álvaro Garrido, porque replicou um “modelo internacional aliado a uma consciência nobre relativamente à função do funcionalismo público e à sua posição nas relações entre Estado e sociedade”.
“O mutualismo tem dificuldades em ser visível para os jovens e é necessária uma comunicação mais ativa e digital. É fundamental dar a conhecer o movimento”
Na incerteza, mas também estabilidade
O século XIX e o início do século XX foram, também, pródigos em momentos de crise. Desde logo, o país vivia em quase constante instabilidade económica, com destaque para a bancarrota de 1892. No início do século XX, o mundo enfrentou simultaneamente uma Grande Guerra e uma epidemia: a gripe espanhola (1918-1920). Em todos estes períodos, o mutualismo não só sobreviveu como soube tirar partido das circunstâncias.
“Em momentos de incerteza, marcados pela Covid-19, pela Guerra ou pela escalada do custo de vida, as instituições mutualistas assumem-se como atores-chave, capazes de responder de forma ágil e flexível, colmatando necessidades das comunidades em diversas áreas, especialmente na saúde”, refere Ana Rita Pereira, Doutoranda em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro e co-autora do livro As Organizações Mutualistas na Sociedade Portuguesa do Século XXI.
“A economia social é a primeira linha de apoio a que as comunidades recorrem, na expectativa de suprir algumas fragilidades, como o desemprego ou a falta de serviços de saúde. Esta entreajuda acaba por compensar a ineficiência do setor privado, mas também do setor público”, explica a investigadora.
Apesar de concordar que o mutualismo ganha uma “dimensão particular em conjunturas de crise”, Álvaro Garrido sublinha que as instituições mutualistas são de todos os tempos. “Para tempos de crise e para tempos normais, de menor turbulência económica e social”, explica. Para o professor, é natural que as populações recorram ao mutualismo para proteção social, temendo que o Estado social não seja suficiente ou que se encontre fragilizado em momentos de crise.
Aliás, durante muitas décadas, os sistemas particulares de proteção social, assistência e seguros estavam praticamente confinados às organizações mutualistas, e havia uma tendência natural de procura por estas soluções de forma auto-organizada e espontânea. “O mutualismo tinha, e tem, uma credibilidade muito forte e uma prática social profundamente enraizada nas comunidades urbanas e também nas populações rurais”, refere.
Estado social: o complemento do mutualismo
Se contarmos a partir do momento da fundação do Montepio Associação Mutualista, foi preciso esperar 70 anos pelos primeiros registos de Estado social em Portugal. “A primeira tentativa de construir um Estado-providência liberal, que funcionava como uma forma de Estado social, deu-se na Primeira República, com a criação do Ministério do Trabalho e dos seguros sociais obrigatórios e quase universais”, explica Álvaro Garrido. Esta ideia, que floresceu na Alemanha nos finais do século XIX, chega a Portugal no contexto de um “voluntarismo reformista extraordinário”, posteriormente substituído pelo Estado Novo.
“Há uma ligação forte entre democracia, cidadania e Estado social. Existe uma complementaridade entre a proteção social pública e as formas de assistência e proteção social privadas do setor mutualista e cooperativo”, refere o historiador.
Para Ana Rita Pereira, o facto de a democracia ter chegado a Portugal apenas em 1974 originou um “Estado social pouco sólido” e que nunca funcionou em pleno. “Nunca definimos um caminho consolidado”, comenta.
Se a economia social, e, dentro desta, o mutualismo, foram o complemento do Estado social nos períodos em que o próprio falhou, as épocas que exigiam mais resiliência, como a recente pandemia, foram também os anos em que estas entidades se viram obrigadas a dar respostas de proximidade e confiança aos novos riscos sociais.
Por exemplo, em abril de 2020, para mitigar os efeitos do impacto da pandemia na situação financeira dos associados, o Montepio Associação Mutualista implementou várias medidas de redução dos encargos financeiros. Foram atribuídas moratórias nos empréstimos a associados e nas rendas das casas da Associação, alargando depois os prazos de moratória para o pagamento das rendas de imóveis habitacionais e comerciais.
Foram, ainda, adiadas datas de prova de vida de pensionistas e rendistas, e acelerados os procedimentos de pagamento dos valores de cobertura do risco de vida. Finalmente, a Associação eliminou penalizações por atraso no pagamento das quotas associativas e das quotas de modalidades.
O efeito destas medidas foi imediato e tangível. Para muitos associados, a moratória significou mais do que um alívio financeiro: foi a diferença entre manter a estabilidade ou entrar num ciclo de incumprimento. Pequenos empresários conseguiram preservar os seus negócios e postos de trabalho, evitando despedimentos em períodos de menor procura. Famílias com créditos ativos ganharam meses preciosos para reorganizar o orçamento, enquanto inquilinos, libertos da pressão da renda, puderam concentrar recursos nas necessidades básicas do dia a dia.
“Em circunstâncias de pressão para redução dos encargos com gastos sociais, o movimento da economia social e o mutualismo em particular têm uma tarefa redobrada, sendo uma forma de impulsionar adaptação e inovação, demonstrando a sua utilidade”, conclui Ana Rita Pereira.
“[O século XIX] é o tempo das instituições de progresso social, como é o caso do Montepio Associação Mutualista, que oferecia aos funcionários públicos uma nobreza de proteção social então inexistente”
O futuro do mutualismo
Nos últimos dois séculos, várias gerações de portugueses viram no mutualismo não só uma proteção social contra imprevistos, mas um porto seguro que permitiu melhorar a qualidade de vida. Se os próximos tempos se caracterizam pela incerteza, reforçando a importância de instituições como o Montepio Associação Mutualista, um dos grandes desafios é chegar aos mais jovens, adaptando-se à forma como estes vivem e interagem, aproveitando tecnologia, educação e cultura colaborativa.
“O mutualismo tem dificuldades em ser visível para os jovens e é necessária uma comunicação mais ativa e digital. É fundamental dar a conhecer o movimento”, refere Ana Rita Pereira. A investigadora exemplifica com a criação de organizações que reflitam os impactos reais do mutualismo na vida das pessoas. Uma comunicação ágil, presença nas redes sociais e visibilidade do trabalho feito são cruciais para atrair novos públicos.
Outro pilar do futuro do mutualista passa pelo rejuvenescimento dos quadros: “Trazer pessoas mais jovens, com novas ideias e experiências, que possam funcionar como um verdadeiro laboratório de inovação social.” Além dos apoios tradicionais, entre os quais a saúde, o apoio aos idosos e a habitação acessível, o mutualismo pode expandir-se para áreas como a inclusão digital e transição verde. “É preciso adaptar as raízes históricas do movimento sem descurar os pilares fundamentais, para estabelecer parcerias com IPSS, lares de idosos ou creches, setores carenciados ao nível de Estado social.”
O historiador Álvaro Garrido aponta um caminho semelhante. “Esta relação entre problemas e soluções pode estender-se ao mutualismo em diversas áreas: habitação, sustentabilidade, combate às alterações climáticas, economia circular”, sem descurar a proteção social complementar. “As pessoas devem procurar esta oferta como complemento às reformas universais da segurança social que, infelizmente, têm vindo a recuar.”
O académico sublinha ainda a importância da educação mutualista. “Hoje, a maioria dos jovens desconhece o que é o mutualismo e as possibilidades que oferece, mas há grande recetividade a soluções práticas e experiências concretas.” Não apenas para enfrentar riscos sociais, mas para criar soluções locais para as comunidades e reforçar relações de solidariedade. “Na área ambiental, na habitação, no desporto, cultura e lazer, o mutualismo tem futuro.”
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É hora de reinvenção
Em tempos incertos, o mutualismo ganha relevância. “O setor deve alargar o raio de ação para novos desafios, como a saúde mental e o envelhecimento ativo. Os casais jovens precisam de creches para os filhos”, lembra Ana Rita Pereira.
A história demonstra que o mutualismo sempre encontrou formas de se reinventar. Em momentos de grande necessidade, o movimento mostra resiliência, espírito de comunidade e conhecimento profundo das necessidades de cada território. “O movimento não vai desaparecer, mas é necessária uma reconfiguração das ofertas e da forma como comunica para o exterior.”
Enquanto se desenha o futuro da colaboração comunitária, uma constatação sobressai: “O mutualismo inevitavelmente terá futuro e desejavelmente também deverá ter”, conclui Álvaro Garrido. Se o mutualismo é inevitável, a questão agora é como cada um pode participar e reforçá-lo.
Montepio e mutualismo: qual a ligação?
Segundo a gíria popular, os amigos são para as ocasiões. Ou seja, quando estamos na mó de baixo, alguém olha por nós e vice-versa. Esta lógica de apoio mútuo também existe de uma forma estruturada, regular e permanente: é o mutualismo.
Há quase mil anos que as comunidades se organizam segundo os princípios do mutualismo. Em Portugal, a lógica mutualista atingiu o seu auge em 1840, ano em que foi fundado, em Lisboa, o Montepio Geral – Associação Mutualista.
A génese do Montepio Geral tem uma marca distintiva que outras associações mutualistas não tiveram: o apoio da rainha D. Maria II. Este prestígio e distinção acompanharam a sua história, conferindo-lhe uma vantagem competitiva que, ao longo do tempo, consolidou a Instituição como é hoje. Passados 185 anos, o Montepio Associação Mutualista conta com 610 mil associados e uma estrutura profissional que se antecipa às crises, oferecendo aos seus membros condições para melhorar a qualidade de vida.