A literacia financeira deve chegar ao pré-escolar?

A literacia financeira deve chegar ao pré-escolar?
13 minutos de leitura
Ilustração de Sérgio Veterano
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A

ideia de ensinar literacia financeira às crianças em idade pré-escolar pode parecer precoce. No entanto, será que esperar mais tempo é o melhor caminho? Até que ponto faz sentido falar de dinheiro com crianças tão pequenas?

O desafio começou com a pergunta de uma criança. “O mar de Sagres é igual ao mar de Lagos?” Lina Nascimento, educadora de infância em Vila do Bispo, no Algarve, incentivou então o grupo, composto por meninos e meninas entre os 3 e os 5 anos, a fazer uma pesquisa em conjunto. E descobriram que no Oceanário de Lisboa, um dos maiores aquários da Europa, se falava de mares diferentes. Foi então que uma das crianças perguntou: “Podemos ir lá ver?” A conversa continuou, sempre com o incentivo da educadora de infância: “De que precisamos para lá chegar? E para entrar?”, perguntou Lina Nascimento. A resposta estava na ponta da língua: bilhetes para Lisboa.

A educadora reuniu, então, com os pais. “Não é possível trabalhar a educação financeira sem as famílias.” E propôs fazer um plano para angariar dinheiro de maneira a que, no final do ano, todos (crianças e famílias) pudessem ir ao Oceanário. Uma vez mais, o plano foi idealizado com base nas ideias das próprias crianças, que decidiram fazer e vender bolos, mas acabaram por fazer muito mais do que isso.

Assim, todos os meses cada menino levava três moedas (não interessava o valor) para colocar nos três mealheiros que também ajudaram a fazer. Lina chamou-lhe a estratégia do tripé mágico. “Considero que o sucesso financeiro depende sempre de três pilares: poupar, investir e doar. E eles iam aprendendo a separar as moedas das notas, a fazer a seriação, íamos contando.” Também fizeram experiências com o dinheiro através de perguntas como: “Será que uma moeda afunda e uma nota boia?” E, por fim, foram todos ao banco abrir uma conta.

“As crianças aprendem através da observação dos adultos. A partir dos 3 anos, podem começar a acompanhar os pais nas compras e, nesse contexto, estes podem aproveitar para introduzir algumas noções sobre dinheiro”

Rita Pinho Branco, diretora de comunicação, marketing e digital do Montepio Associação Mutualista

A questão pedagógica: como abordar o dinheiro?

A cada ação desenvolvida, Lina Nascimento procurava sempre estimular as crianças a refletirem sobre os temas propostos. Recorda-se de como, no dia em que estiveram a fazer bolinhas de chocolate para vender à comunidade, as duas Carolinas tomaram uma decisão de gestão: se diminuíssem o tamanho das bolinhas teriam mais unidades para vender e, assim, conseguiriam mais dinheiro. “É para isto que eu trabalho, para a criança chegar sozinha a uma conclusão. Trabalha-se a matemática, a gestão… são mil e uma facetas do desenvolvimento infantil”, diz.

“Não se trata tanto de ensinar no sentido clássico, tradicional”, explica Lourdes Mata, coautora do Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar, juntamente com Isabel Lopes da Silva e Manuela Rosa. O documento foi recentemente disponibilizado no Todos Contam, o portal do Plano Nacional de Formação Financeira.

Para as crianças em idade pré-escolar, a questão está no “viver as situações, não em fazer fichas”, sublinha a professora do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida. Para Lurdes Mata, devem proporcionar-se “experiências que levem [as crianças] a refletir sobre como se gasta o dinheiro e de onde ele vem, através de situações financeiras do quotidiano”. Por exemplo, ir às lojas com os pais ou interagir com o dinheiro que recebem nos aniversários.

Num desses momentos, os meninos de Lina Nascimento observaram o funcionário do banco a contar as moedas que tinham poupado. Também acompanharam a professora no momento de fazer os pagamentos da viagem com o cartão multibanco.

Lina diz-nos que despertou para o tema da educação financeira numa conferência, “em 2011 ou 2012”, onde ouviu falar pela primeira vez de projetos que estavam a ser desenvolvidos no ensino secundário e no ensino básico. “E em educação pré-escolar não se faz nada”, questionou na altura?

Até àquela data, não havia em Portugal qualquer referência sobre como trabalhar este tema com crianças tão pequenas. Começou a estudar o assunto com mais profundidade e, um dia, surgiu aquela pergunta sobre o mar. Foi assim que tudo começou. Desde então, desenvolveu vários projetos, sendo um deles particularmente ambicioso: levar uma turma inteira a fazer um batismo de voo, depois de uma criança ter relatado a sua experiência de andar de avião.

Com a estratégia do tripé mágico conseguiram juntar o suficiente para passar três dias no Porto, com estada e visita a museus. “A educação financeira na escola é um processo que prepara as crianças e os jovens para serem consumidores esclarecidos. Já compreendem conceitos e mecanismos financeiros básicos e adotam comportamentos financeiros adequados. Ficam, assim, mais bem preparados para tomar decisões sobre a gestão do dinheiro ao longo da vida”, explica o Guião. Desenvolvido através de uma parceria entre o Ministério da Educação, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros e associações do setor, este documento foi distribuído a todos os jardins de infância do país.

EI - EDUCAÇÃO FINANCEIRA

Guia de Pequenas Grandes Poupanças: os seus filhos sabem poupar?

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A questão neurológica: como é que o cérebro entende estes temas?

Quando a filha nasceu, em 2022, Nuno Santos percebeu que, para lhe ensinar sobre estes temas, ele próprio teria de aprender mais. Apesar de ser formado na área da contabilidade e fiscalidade, reconhecia fragilidade em algumas estratégias e hábitos financeiros saudáveis. À medida que estudava o assunto, foi desenvolvendo o projeto Professor Finanças, que lançou em 2024. “A frase do projeto é: ‘Aprendendo, ensinando.’ Eu vou aprendendo enquanto tento ensinar à minha filha e às minhas sobrinhas. A ideia é passar a mensagem aos pais de que isto é um processo e o importante é não ficar parado”, explica.

No caso das sobrinhas, que têm 6 e 7 anos e sabem operações como somar ou subtrair, já é possível falar-lhes de conceitos mais abstratos. Com a filha ainda tudo é levado na brincadeira – exatamente como os especialistas defendem: “Brincar é o elemento central para a aprendizagem delas”, sublinha Lourdes Mata.

De acordo com o guia Pequenas Grande Poupanças, desenvolvido pelo portal de literacia financeira Ei – Educação e Informação, do Montepio Associação Mutualista, com 3 anos as crianças “começam a compreender o mundo ao seu redor, mas ainda não sabem contar e são demasiado imaturas para perceber o dinheiro como um objeto de valor intrínseco. Nesta fase, a melhor forma de introduzir o tema do dinheiro é através da brincadeira e do ‘faz de conta’”. É precisamente esta a estratégia que Nuno Santos tem seguido, incentivando situações como o número de produtos que se podem trocar com “moedinhas”. “A ideia é transmitir atitudes e comportamentos desde cedo”, diz o Professor Finanças, que envia uma newsletter mensal sobre o tema.

“A noção de quantidade é importante”, afirma Sofia Duarte, neurologista pediátrica no Hospital CUF Cascais e na Clínica CUF Almada. “É no contacto direto com os objetos, quer em casa, quer na escola, que as crianças começam percebem a noção de quantidade e de que as coisas se podem dividir.”

Numa ida ao supermercado, pode-se introduzir a noção de escolha, que já implica princípios de educação financeira. E são inúmeras as situações do quotidiano em que se pode trabalhar o tema. Mesmo na natureza, quando se pretende construir algo, deve-se envolver as crianças: de que precisamos? Em que quantidade? Onde vamos buscar?

“A chave fundamental para a educação”, conclui Sofia Duarte, “é deixarmos que seja a curiosidade da criança a trazer as questões que vão ser abordadas. Assim, estará mais disponível para aprender, porque são as suas próprias dúvidas”. Deve-se, por isso, fazer sempre a ponte com o mundo real – tal como fez Lina Nascimento em Vila do Bispo. Impor é sempre contraproducente. “Aquilo parece tão abstrato que a criança vai estar menos atenta e as aprendizagens não vão ser feitas com o mesmo impacto”, conclui a neurologista pediátrica.

“Pais e educadores devem estar cientes de que a educação financeira não é um investimento a curto prazo. O que estão a semear agora terá resultados em cinco ou seis anos, quando a criança começar a ter necessidade de gerir o próprio dinheiro”

Nuno Santos, mentor do projeto Professor Finanças

A questão financeira: quais são os melhores truques?

“É superimportante falar de dinheiro e fazer com que a criança lide com ele, consiga manuseá-lo, cheirá-lo”, diz Lina Nascimento. O referencial criado pelo Ministério da Educação, em 2012, refere que devemos transmitir às crianças a noção do que é essencial e do que é supérfluo, bem como permitir-lhes o contacto com notas, moedas e as respetivas diferenças. “São coisas importantíssimas, mas muito básicas. É possível aprofundar muito mais o tema da educação financeira com as crianças pequenas”, assegura a educadora de infância de Vila do Bispo, que explora temas como a gestão, a espera e a paciência através da horta pedagógica que mantêm. Vão ao mercado e compram, por exemplo, uma courgette a um euro, que depois plantam na terra. “Todo o caminho desde a plantinha bebé até à colheita e venda é um ensinamento enorme. A criança vai saber esperar que cresça, sabe que é muito importante que o sol bata na terra, que haja água. Depois, ao vendê-la por 3 euros, percebe que obteve um lucro de 2 euros. Aprende o valor do trabalho associado, tal como acontece quando fazemos os bolos para vender”, descreve.

Esta é uma metáfora que também se aplica às famílias. “Pais e educadores devem estar cientes de que a educação financeira não é um investimento a curto prazo. É a médio-longo prazo, porque o que estão a semear agora terá resultados em cinco ou seis anos, quando a criança começar a ter necessidade de gerir o próprio dinheiro”, explica Nuno Santos.

De acordo com os resultados do PISA (Programme for International Student Assessment) apresentados em 2024, os alunos portugueses têm menos contacto com atividades e tarefas ligadas à literacia financeira quando comparados com a média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). Estas temáticas integram a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento em dois ciclos do ensino básico desde 2018, mas apenas 30% dos estudantes de 15 anos avaliados afirmaram ter contacto com assuntos financeiros na escola. Ainda assim, 91% afirmaram verificar o troco que recebem, 93% disseram poupar dinheiro em casa pelo menos uma vez por ano e 38% disseram ter conta bancária (a média dos países da OCDE é de 62%).

Estes dados, referentes a alunos de 15 anos, mostram que ainda há muito a fazer. A educação financeira deve começar desde a infância e não a partir de uma idade convencionada. Deve ser integrada na educação global, sempre que o contexto o permita. E, nesta fase, são os pais, a família e os educadores os principais impulsionadores do consumo consciente. Para Rita Pinho Branco, diretora de comunicação, marketing e digital do Montepio Associação Mutualista, a educação financeira dos mais jovens é fundamental para que, “a médio e longo prazo”, tenhamos cidadãos “mais informados e preparados para tomar boas decisões financeiras”.

Uma sugestão prática: os próprios pais “devem procurar dar o exemplo ou evitar comportamentos contrários aos que estão a tentar ensinar”, sublinha Nuno Santos, dando como exemplo o impacto negativo das compras por impulso. “As crianças estão muito mais atentas e têm muito mais pensamento estratégico do que nós achamos”, acrescenta Lourdes Mata, sugerindo que se envolvam os mais pequenos em projetos comuns. Por exemplo, se todos tiverem o sonho de ir à Eurodisney, vale a pena perguntar-lhes como podem ajudar e poupar para o conseguir.

“A noção de quantidade é importante. É no contacto direto com os objetos, quer em casa, quer na escola, que as crianças começam percebem a noção de quantidade e de que as coisas se podem dividir”

Sofia Duarte, neurologista pediátrica no Hospital CUF Cascais e na Clínica CUF Almada

O porto de abrigo da literacia financeira

O mealheiro, diz Rita Pinho Branco, “é um excelente ponto de partida para que as crianças aprendam que o dinheiro deve ser guardado num local seguro”. Por exemplo, os pais podem optar por um frasco transparente onde vão colocando as moedas. “Esta opção permite às crianças verem o crescimento da poupança, o que torna o processo mais visual, motivador e envolvente.”

Além da poupança, o Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar acrescenta mais três temáticas que podem ser abordadas com as crianças mais pequenas. A primeira é o planeamento e a gestão do orçamento, através das necessidades e desejos – “Queres, mas precisas mesmo disso?”, pode ser uma pergunta a colocar às crianças para que compreendam o que é prioritário – e das despesas e rendimentos (pensar com elas na forma de angariar fundos, como podem adquirir determinado material de que necessitam, são algumas das estratégias propostas).

Uma segunda temática é a compreensão de produtos financeiros básicos – isto é, saberem o que é um banco, que existem diferentes meios de pagamento, como as moedas, as notas, os meios eletrónicos. “As crianças pensam que basta inserir o cartão numa caixa e dá para comprar tudo”, recorda uma das coautoras, Lourdes Mata. Pode-se, por exemplo, nas idas ao supermercado, “sensibilizar para os preços afixados, promover a comparação de custos e explicar o troco a receber”, exemplifica o Guião.

Por fim, devem introduzir-se noções de ética e cidadania para que a criança compreenda que “as decisões financeiras têm implicações sociais e ambientais”, como saber que não podemos usar o dinheiro dos outros sem a sua autorização, não gastar mais do que se tem e usar o dinheiro também para ajudar quem precisa.

As crianças de Vila do Bispo tinham sempre um terceiro mealheiro de onde tiravam dinheiro para ajudar uma instituição. Uma vez foram todos juntos comprar e entregar materiais escolares à ala pediátrica de um hospital. Com tudo isto, afinal, qual é a melhor forma de as crianças aprenderem? “Através da participação ativa na procura de soluções e na construção da sua aprendizagem. Isso é essencial”, resume Lourdes Mata.

Literacia financeira para todos

Só nos últimos dois anos, o guia Pequenas Grandes Poupanças foi visto por mais de 30 mil pessoas. Rita Pinho Branco, diretora de comunicação, marketing e digital do Montepio Associação Mutualista, explica por que os pais devem lê-lo e transmitir esse conhecimento às crianças do pré-escolar.

A literacia financeira deve chegar à educação pré-escolar?

A literacia financeira deve começar logo na educação pré-escolar, de um modo lúdico, simples e adequado à idade. Não se trata de ensinar conceitos complexos, mas de introduzir, de forma natural, noções básicas como o valor do dinheiro, a importância da poupança e o poder da escolha.

Até aos 3 anos, as crianças ainda não compreendem o significado do dinheiro. Mas, a partir dessa idade, é possível começar a abordar o tema através das brincadeiras e do “faz de conta”, ajudando-as a desenvolver uma relação saudável, positiva e consciente com o dinheiro.

Antes, entre os zero e os 3 anos, o papel é sobretudo dos pais, que podem dar os primeiros passos na educação financeira dos filhos iniciando uma poupança desde o nascimento. Esta poupança pode aumentar com o tempo e tornar-se uma base importante para concretizar sonhos em diferentes fases da vida – da educação à autonomia.

Que atividades podem promover a literacia financeira em contexto escolar e em contexto familiar?

As crianças aprendem, sobretudo, através da observação dos adultos. A partir dos 3 anos, por exemplo, podem começar a acompanhar os pais nas compras e, nesse contexto, estes podem aproveitar para introduzir, de um modo simples e natural, algumas noções sobre dinheiro, plantando desde cedo as sementes de conceitos importantes.

Nesta fase do desenvolvimento, a brincadeira continua a ser uma ferramenta poderosa de aprendizagem. As simulações de situações do quotidiano — como ir às compras ou brincar às lojas — são formas eficazes de introduzir conceitos financeiros. As crianças sentem-se naturalmente atraídas pelas moedas, pelo seu brilho e formato. Os pais podem aproveitar esse interesse para criar momentos educativos: espalhar moedas sobre a mesa, incentivá-las a separá-las por tamanho ou por cor, contá-las em conjunto e ajudá-las a guardá-las na carteira ou no mealheiro. Este gesto simples reforça a ideia de que o dinheiro é valioso e deve ser guardado com cuidado.

Neste artigo, o Ei pega em desenhos animados, muitos deles dirigidos a crianças do pré-escolar, para explicar que não há idade para ter maior literacia financeira. Para este target, o entretenimento é sempre a melhor opção?

É, sem dúvida, uma das opções. O entretenimento — sejam ou não desenhos animados — facilita a compreensão de conceitos complexos, como a poupança, o orçamento, o investimento ou o consumo consciente. Quando apresentados através de linguagem visual e histórias simples, estes temas tornam-se mais acessíveis e envolventes para os mais jovens.

Neste artigo, procurámos abordar o tema da educação financeira com um olhar renovado, centrado nos mais jovens. A literacia financeira pode (e deve) estar presente em diversas situações do quotidiano — esta é apenas uma das muitas formas possíveis de a introduzir, de um modo natural e eficaz.

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