“Evito fazer músicas tristes porque depois fico anos a cantá-las”

“Evito fazer músicas tristes porque depois fico anos a cantá-las”
23 minutos de leitura
Fotografia de Rodrigo Cabrita
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Encontrámo-nos com Mallu Magalhães em Algés, em frente ao novíssimo estúdio que vai receber os seus futuros trabalhos, mas também os de Marcelo Camelo, o marido, e outros músicos. “Esteve fechado dois anos, vamos reabri-lo agora.” Mallu contou-nos que tem estado ocupada com o selo discográfico Gran Gran – “coisas muito burocráticas, correios e tal” – mas que já pensa no próximo álbum. Quando passámos para dentro, foi aí que começou a conversa.

O álbum Esperança foi lançado em 2021. Quando será o próximo?

Senti vontade de fazer um disco novo, é uma coisa recente. Compor, para mim, é muito natural e continuo a fazê-lo para outros artistas, tenho sempre um repertório em casa com o Marcelo [Camelo], compomos muito juntos. Sei que fazer um disco novo significa muito mais do que vir para o estúdio e gravar. É uma nova etapa da vida.

É algo conceptual, tens de encontrar um conceito?

Para encontrar um conceito precisamos de ser um conceito, isso é que é curioso. Enquanto não sou nada novo, não tenho nada novo para dizer, preciso de esperar o tempo natural das renovações. Por vezes, não me sinto muito motivada a fazer um trabalho que seja muito parecido com o anterior. Mas sinto-me motivada a tentar coisas novas, posso sonhar com esse processo de tentativa e erro, posso vir para o estúdio e sentir vontade de tocar. Agora chegou finalmente o momento, na minha vida pessoal e no processo artístico, em que sou uma pessoa diferente do que era. Às vezes, preciso de gravar um disco porque preciso de saber o que tenho a dizer.

É uma introspeção? Quase como ir ao psicólogo?

Exato. Para mim, compor foi sempre uma espécie de salvação. É mais do que desabafar, é criar algo para me agarrar e sentir motivação para superar as coisas. Grande parte da minha composição é mais do que eu sou, é o que queria ser. É terapêutico, mas também necessário.

É um olhar para o futuro?

Sim, e acho que quanto menos componho, mais pessimista fico. Preciso de estar ativa para me relembrar dos motivos pelos quais continuo uma jornada qualquer na minha vida. Para mim, fazer um disco é muito multifatorial, sem querer problematizar o processo, porque ele é lindo. Os meus discos acabam por ser muito íntimos e confessionais. Sinto que têm um tempo próprio e fazer sem querer é horrível. Não corre bem.

Dona de uma voz cristalina, Mallu Magalhães saltou para a ribalta aos 15 anos e, desde então, as suas músicas são cantadas por várias gerações de fãs

Evitas fazer álbuns forçados?

Tudo o que manifesto é genuíno. E se não for assim não tem graça. Às vezes, estou a compor para outro artista e começo a colocar-me na vida dele, a imaginá-la, e aquilo leva-me para lugares completamente diferentes. Há a personagem Mallu, a artista que tem uma essência, que passa muito pela parte genuína e é muito real.

Mas as músicas que guardas para os teus próprios discos és tu?

Sou eu. Às vezes faço uma composição para outras pessoas e penso: “Só eu posso cantar esta música.” Não dá para outra pessoa. Tento cantar músicas de outros compositores e aquilo não funciona. Porque, no fundo, não sinto aquilo, não me identifico.

És uma espécie de anti-Chico Buarque, que, como sabes, mete-se sempre no lugar das outras pessoas, muitas delas mulheres.

É isso [risos]. Acho que faço radicalmente o contrário. Gosto de criar personagens, mas mesmo quando o faço estou a falar de coisas que são reais para mim.

Estás, através da música, a preparar-te para o futuro?

É exatamente isso. Até parece egoísta estar sempre a falar de mim, mas é a realidade. Preciso deste material de vida para ter o que dizer. Quando faço um disco, tenho a vontade de dizer: “Olha o que eu descobri existindo.” É esta vontade. Precisamos de saber que a vida é linda e que até no fundo do poço existe vida. É isso que me motiva a fazer um disco. Tenho uma tendência muito emotiva e sensível e isso é ótimo para a profissão. Mas, na prática, por vezes custa. Por isso, tento forçar-me a ter processos mais leves para produzir mais e evitar fazer muitas músicas tristes no disco, porque depois fico anos a cantá-las.

Quando cantas coisas com 20 anos lembras-te de acontecimentos antigos?

Algumas nem quero cantar.

Para o público, ouvir uma música antiga leva-nos para onde estávamos nas ocasiões especiais em que a música tocou.

Dá para os dois lados. Às vezes, uma música triste para mim não é triste para outra pessoa. O primeiro sucesso da minha carreira, Tchubaruba, que escrevi aos 12 ou 13 anos, é uma música muito feliz. É uma narrativa de um encontro no qual descrevo uma menina a chorar. E há uma personagem que a ajuda, que canto como se fosse eu. Mas as pessoas não sabem que eu sou, na verdade, a menina. E até gosto de cantar esta música, que me remete à felicidade. A música trouxe-me toda uma vida e jamais poderia remetê-la à tristeza, mas ao mesmo tempo custa-me aquilo. O Vinícius de Moraes dizia que “uma mulher precisa de ter alguma coisa de triste”. E eu acho que sou essa pessoa. Por mais que possa estar feliz, há sempre um microdrama por dentro. Tento evitar, mas existe algo dentro de nós, como se sentíssemos uma sensação de estarmos vivos para qualquer lado. Não que recomende os extremos, mas acontece. Se eu fico muito triste, é um choque de realidade.

Depois da fase dos discos da adolescência e da maternidade, que fase vem a seguir?

Ainda não sei, mas será certamente diferente. Fiz o Vem quando a minha filha Luísa era bebé, comecei a compô-lo quando estava grávida e gravei-o quando ela tinha acabado de nascer. O disco fala, pontualmente, do processo da gestação e do início da maternidade. Já o Esperança foi um disco que fala de ser mãe de uma criança pequena. Hoje, ela está mais velha e a minha maternidade apresenta desafios que não existiam naquela época. E isso tem-me feito ser uma pessoa diferente. Sinto que os meus desafios são mais de transformação pessoal porque existe muito a educação através do exemplo, e acho que este é o meu grande desafio: uma presença calma, estável, construtiva e atenta. Afetiva. O meu objetivo é ser essa mãe.

Ensinar e aprender a ser feliz

Na crónica do teu primeiro concerto em Portugal, no dia 27 de janeiro de 2014, no CCB, escreveu-se no Altamont: “Pensar que está ali no centro das atenções uma jovem de 21 anos, de aparência frágil, dá-nos logo a impressão de que o potencial de desastre é elevado. Mas não é, não foi, de todo, o caso. O trabalho de casa estava bem feito.” Lembras-te deste concerto?

Lembro-me, sim, mas tenho ideia que já tinha atuado antes, com o David Fonseca [ndr: em 2012, Mallu e David Fonseca deram um concerto no Palco Sunset, no Rock In Rio Lisboa). Aliás, mesmo antes já tinha vindo fazer um mini-show, numa situação bem mais informal, quando tinha 16 anos.

Estavas no início da tua carreira.

Sim, e tive de vir com a minha irmã, que tinha 18 anos e era responsável por mim. Nunca tínhamos vindo à Europa e até fomos a Veneza, em Itália. Quis aproveitar para conhecer o continente.

Porque dás tão poucos concertos?

Não gosto de ficar longe da Luísa, não consigo. Ela consegue, está ótima e temos uma família unida, ela fica bem. Eu é que não consigo. Quando engravidei, lembro-me de dizer ao meu empresário que, mesmo grávida, conseguia fazer concertos. Ele disse-me: “Eu sei que consegues, mas não sei se vais querer.” Fiquei incomodada com aquela frase, mas depois dela nascer vi que era verdade e não queria ficar longe da Luísa. Nem um segundo. O problema não é da maternidade nem da criança, mas meu. Tenho uma paixão completa e até um pouco desequilibrada pela Luísa. Eu vejo as outras mães e exagero um pouco. É um pouco… muito [risos].

A Luísa vai fazer 10 anos, por isso tem aulas e não é fácil levá-la para concertos.

Quando era pequena, sim, era fácil levar, não tinha escola nem tantas atividades. Agora já não dá para faltar. E a escola portuguesa tem a particularidade de ter mais horas e mais conteúdo que a brasileira, durante mais tempo. E nas férias é a altura que tenho para aproveitar aquele momento com ela. Por isso, fico nesta situação: ou ela perde as aulas ou eu perco o verão.

Mallu Magalhães, a antivedeta

Com apenas 15 anos, Mallu Magalhães entrou no estúdio 3 da TV Globo, em São Paulo, para participar no Programa do Jô, talk show apresentado por Jô Soares, humorista e lenda da cultura brasileira. Meses antes, quatro músicas partilhadas na rede social MySpace tornaram-na famosa no Brasil, ao ponto de ter lançado o primeiro álbum, homónimo, um ano depois, em 2008.

Com a participação especial na música Janta, do álbum Sou, de Marcelo Camelo, Mallu ganhou dimensão internacional. A música foi considerada a melhor do ano, no Brasil, pela revista Rolling Stone e deu-lhe asas para voar para mais dois álbuns em nome próprio: Mallu Magalhães (2009) e Pitanga (2011). Em 2014, pouco depois de se ter mudado para Lisboa, Mallu fez a Banda do Mar com Marcelo Camelo, agora marido, e o português Fred Ferreira (Orelha Negra), ao que se seguiram dois álbuns: Vem (2017) e Esperança (2021). Desde o nascimento da filha Luísa, em 2015, divide o tempo entre a composição, os concertos e a maternidade.

Tens alguma canção que te emociona sempre que tocas ao vivo?

Tenho várias. Em cada concerto há uma diferente que me emociona, porque depende do que estou a sentir nos dias anteriores. Há umas que falam sobre mim, sobre como me sinto, as minhas inseguranças. Quando canto Enjoy the Ride, que fiz para a Luísa, e ela está na plateia, também custa. Houve um concerto em que chorei tanto que não conseguia cantar. Foi o primeiro concerto após a pandemia e a música fala sobre não desistir. [Começa a cantar]: Promise me you try / even when you’re too tired. Fiquei com um nó na garganta e ela na plateia. Todos chorámos, porque, de repente, ela disse: “Mamãe, te amo.” Chorou o teatro todo e demorei umas três músicas para conseguir cantar novamente.

Como é que ela vê os pais serem artistas e figuras públicas?

Acho que ela gosta. Quando era mais criança, dizia que era bom ter os pais famosos. Mas tento explicar-lhe que tudo tem dois lados. A fama e a exposição são interessantes por fora, mas nem tudo é um mar de rosas. Por vezes explico-lhe como funcionam os concertos, como ganhamos dinheiro, como tudo acontece, e ela fica impressionada com o custo do processo.

Os ensaios, a repetição.

E o ter que pensar tudo do zero, sempre. Há tantas pessoas envolvidas e há tantas variáveis que podem correr mal. E, ao mesmo tempo, tantas variáveis que correm bem e que nunca imaginámos. Abraçar a imprevisibilidade de ser artista é uma valência interessante para ensinar uma criança. Imagino que seja bom, para ela, ver assim os pais, porque somos muito ativos mas também procuramos ensiná-la a ser feliz. É algo inato e cada um tem a sua maneira de ser, mas também se aprende. As pessoas ensinam muito como gerir a raiva, como tratar os outros, como se organizar na escola, como lavar as mãos, e tudo isso é muito importante. Mas fala-se pouco sobre como ensinar a ser feliz, apreciar alguma coisa que está a acontecer. Às vezes, ela surpreende-me e vejo que conseguimos.

Apreciar o momento, cada dia.

E até lembrarmo-nos de sermos felizes, lembrarmo-nos de sermos nós. Quero ver um filme e comer pipocas. Agora quero deitar-me nesta praia ou fazer uma pintura experimental que não sei para que lado vai. Faço porque quero, porque me faz feliz. Procuro ensinar isto na prática diariamente e acho que é um ensinamento interessante.

Mallu fotografada por Rodrigo Cabrita ao lado da versão em vinil do álbum Vem, de 2017. A artista apoia-se nas canções para olhar para si própria

A música, a matemática e a vida

Alguma vez te surpreendeste com a forma como o público interpretou uma música tua?

Várias. Cada pessoa interpreta à sua maneira [risos]. Há uma música que fiz para a Luísa, que se chama Casa Pronta, em que a letra é assim [Começa a cantar]: “Vem pra perto de mim / Já cansei de esperar / Você nem vai acreditar / Quando vir a nossa casa pronta / As flores da sala de estar / E os detalhes que você gosta” e vou descrevendo como preparei a casa para a Luísa. E muitas pessoas acham, e podem fazê-lo, que estou a preparar a casa para a chegada do Marcelo, pensam que é uma música romântica. É uma declaração de amor, mas a minha intenção era outra, é uma imagem da criança que ia nascer.

Mas não achas que é bom quando as pessoas atribuem outros significados às tuas letras?

Super. Até porque, às vezes, as pessoas acham que somos muito mais inteligentes do que somos. Há o mito, as teorias. Tenho uma música que diz: “Pé de elefante / Roda gigante / Vou confiante / Nada sei.” O motivo? Não sei. Era quase um motivo sonoro, do peso do elefante, só porque a imagem é maluca.

Ou até para compor o verso, para rimar?

Às vezes, às vezes. E as pessoas ficam a pensar: “O elefante simboliza não sei o quê.” Pode ser, talvez o meu inconsciente tenha feito mil ligações e escolheu o elefante e a roda gigante. Mas para mim, normalmente, é intuitivo, tem zero de ponderação. E quanto mais intuitivo e menos ponderado for, melhor. Acaba por estragar, fica algo meio robótico.

Se bem que dizem que compor uma música é matemático, pelas rimas e sílabas.

Também já ouvi dizer isso. Mas mais da maneira que a matemática também está presente na natureza. Tudo é do ser humano.

Por exemplo, nas músicas do Sérgio Godinho as sílabas só podem cair naquela nota musical.

E são letras muito sofisticadas, pensadas. As minhas são trabalhadas mas por tentativa e erro, de maneira intuitiva. As primeiras versões não fazem sentido nenhum. Tenho muito à-vontade em compor assim. Sinto que, depois desta parte cerebral e matemática, ela precisa acontecer, senão a letra não termina, fica só uma ideia no ar, uma imagem.

E queres que a letra acabe e que faça sentido?

Tem de acabar e tem de fazer algum sentido. Pode até estar umas horas sem sentido, mas depois precisa de ter [risos]. Mesmo na música experimental há tantos artistas, cantores e compositores que nem sequer usam palavras, apenas som da boca, quase pseudolinguagem. Não é que dependamos da palavra, mas o meu trabalho acaba por morar neste lugar da mensagem, e ela depende da palavra.

Há um vídeo muito conhecido do Chico Buarque a explicar o que sentiu quando começou a ler os comentários online sobre ele e ficou com raiva porque eram muito negativos. Costumas pesquisar-te e olhar para o que dizem de ti na internet?

Às vezes. Não costumo fazer isso rotineiramente, mas é bom saber o que acham de nós. As críticas construtivas são bem-vindas e fico muito tranquila com isso. Por exemplo, recentemente tive uma crítica de uma pessoa que disse que tinha ido ao concerto e eu cantei as músicas de forma diferente do álbum. E fiquei com aquilo na cabeça e pensei que ela tinha toda a razão. Coloquei-me no lugar da pessoa e pensei que, quando vou a concertos, gosto de me relacionar com o disco. E entendi a crítica. Sempre que canto uma música, interpreto-a, por isso claro que vai variar. Mas depois fui rever os concertos e algumas músicas estavam completamente diferentes [risos]. E fiquei preocupadíssima, por isso agora tenho-me focado em cantar mais parecido com o álbum.

Então foi quase um ensinamento que tiveste ao ver esta reação. Influenciou-te?

Sim. Podemos ouvir o que as pessoas dizem. E claro, como tudo, cada artista está sujeito a ser gostado e criticado, é natural. Se pusermos uma planta na rua, há pessoas que vão gostar dela e outras vão odiá-la. O importante é não personificar, embora seja desafiante. Para mim, é uma parte que custa.

Tendo em conta que te tornaste famosa muito jovem, aos 16 anos, tens alguma carapaça que te proteja destes comentários?

Carapaça ou ferida? Porque debaixo da carapaça, a casca que fazemos para a ferida tem o tamanho dela. Sou muito grata por ter ficado muito conhecida muito cedo, mas também acho que aquilo talvez tivesse doído menos se tivesse passado por determinadas situações se fosse mais para a frente. Mas não adianta lamentar-me.

A vida é a vida, não é?

É isso. Passa o tempo, estou mais velha, e nas coisas que não vivi continuo igual. Não tem a ver com a idade, mas com o que vivemos ou não, com a maturidade. Claro que quantos mais anos vivemos, mais coisas também vivemos e tornam-se naturais. Sinto que custou, doeu, e várias vezes fiquei no limite de suportá-las, mas fui aprendendo. Hoje, ainda é uma coisa que custa.

Nos últimos anos, a artista esteve mais longe dos palcos. A maternidade e a gestão da editora Gran Gran têm sido as prioridades de Mallu

Linha verde e o horizonte de Lisboa

Achas que o facto de teres vindo para Portugal ofuscou a tua carreira? Se tivesses ficado no Brasil terias uma carreira diferente?

Talvez fosse diferente. As escolhas que fazemos implicam consequências. Não sei dizer-te onde estaria no Brasil. Mas sinto que consegui ter muitas coisas boas e ter uma vida pacífica, tranquila. Tinha passado por várias violências e estava realmente a precisar de me sentir segura e também de um tempo para me tranquilizar. Por outro lado, também fizemos a Banda do Mar, que tocava muito no Brasil, por isso, nos primeiros anos em que me mudei para Portugal, passava metade do tempo no Brasil. Não senti a distância.

Em Portugal, fizeste parcerias com Capicua, Branko, David Fonseca. Estou a esquecer-me de alguém?

Com o meu nome, sim. Mas depois há outras, incluindo trabalhos que ainda não foram lançados. Nos últimos tempos, por exemplo, fiz uma música para a Raquel Tavares e outra para a Áurea.

Querias ter feito mais?

Em Portugal, encontrei um meio muito aberto e tranquilo. Só não faço mais porque tenho esse problema grave de ser muito caseira, radicalmente caseira. Sou muito quieta, estou sempre na minha e é difícil tirarem-me de casa. Às vezes, aparecem oportunidades para fazer música e eu penso: “Já tenho a semana toda programada e não quero dizer que só posso dentro de três meses.” Por isso acabo por não fazer.

Mas há algum músico português com quem gostasses de trabalhar? Nem que fosse daqui a três meses?

Gosto muito da Ana Lua Caiano, a música dela é muito interessante. Não sei se existe alguma ligação estética entre os nossos trabalhos, porque o dela é muito autêntico, é uma estética muito única. Em Portugal, todos os anos aparecem pessoas muito talentosas. Mas também gostava de trabalhar com o Rui Veloso, que tem um cancioneiro. Estou sempre aberta, embora seja difícil ir para os lugares. Fujo e escondo-me. A culpada da minha produção escassa sou mesmo eu.

Queria falar-te de três músicas. A primeira é Janta, que cantaste com o Marcelo em 2008, no álbum Sou. Quando a música tem muito sucesso e se canta milhares de vezes, muitos autores ou bandas acabam por fartarem-se ou até abandoná-la. Isso acontece com a Janta?

Não. É uma música linda, mas por vezes é difícil cantá-la sozinha. Os êxitos também têm razão de ser, porque geralmente são músicas boas. Nos concertos, quando as pessoas pedem as músicas, gosto de poder agradar e toco-as. O difícil, por vezes, é encaixá-las todas no repertório. Os concertos não podem ser muito longos porque cansam. Temos de fazer um balanço, quase uma história, e por vezes é difícil cantá-las todas, porque já tenho 17 anos de carreira e preciso de encontrar o equilíbrio.

A segunda música é Linha Verde, que tem a guitarra portuguesa do José Manuel Neto. É uma música literal, sobre a linha verde do metro de Lisboa?

Olha, mais uma parceria. Sim, é sobre a linha verde do metro de Lisboa. Uso muito os transportes públicos, adoro andar assim pela cidade. E usava muito a linha verde e tocava aquele “dling dlong, linha verde” e achava o máximo. Esta linha verde também me lembra a estrada e Portugal tem muitas estradas com paisagem verde ao longe, uma coisa reta durante horas e horas. A música também fala da imigração [começa a cantar]: “A linha verde / o tempo bom / quem vem de longe sabe.” É um privilégio estar aqui, esta tranquilidade, poder usar novamente os transportes públicos sem receios e poder estar com as pessoas. Eu gosto de ver pessoas na rua.

A terceira música é Deixa a Menina, do último álbum. Que, julgo, fala da tua superproteção à Luísa. É verdade?

Da mãe louca [risos]. A primeira frase que ela disse na vida foi essa: “Deixa e menina.” Ela adora o mar e, como já nasceu em Portugal, está habituada ao frio. Na praia, ela gostava do mar, do mar gelado. E eu ia atrás, com medo que ela ficasse doente, e ela dizia-me isso. Não sei se cheguei a pô-lo no disco, mas na minha versão caseira a música começa com uma gravação da Luísa, com 2 anos, a dizer: “Deixa e menina.” Era muito pequena e aprendeu a frase porque ouvia as pessoas a falarem. E é uma frase muito portuguesa, não é comum no Brasil. Hoje, ela olha para os discos e pergunta-me qual é a música para ela.

A tua música é um documentário sobre ti que alguém vai ver daqui a 20 ou 30 anos.

Acho que sim. O que é ótimo e perigoso.

Fã de Ana Lua Caiano e Rui Veloso, Mallu Magalhães abre a porta a uma parceria. Vamos ter novos duetos luso-brasileiros?

Mallu e as finanças

Disseste que, durante a pandemia, vivias de direitos de autor. Quase nenhum músico português pode dizer isso. Tem a ver com o facto de os teus direitos estarem no Brasil e os dois mercados serem substancialmente diferentes?

Imagino que seja uma questão de território, porque os direitos de autor têm a ver com a quantidade de reproduções e as minhas músicas já tocaram nas rádios e nas telenovelas. Mas também tenho uma vida económica, não precisava assim de tanto dinheiro [risos].

Poupaste durante três anos para gravar as primeiras músicas. Quem te ensinou a poupar desde os 12 anos?

Os meus pais são pessoas muito pragmáticas e educaram-nos de uma forma muito realista. O trabalho estava muito presente na nossa estrutura familiar, era valorizado e festejado. Eles não reclamavam do trabalho, consideravam-no uma sorte. Nenhum deles é do meio artístico – a minha mãe é arquiteta paisagística e o meu pai engenheiro mecânico – mas nunca limitaram os nossos sonhos, meus e da minha irmã. Por outro lado, com a rotina de morar em São Paulo não tinha muita margem para gastar dinheiro. Saía de casa às 6h e voltava às 17h. Não tinha história.

Os teus pais prepararam-te para poupares?

Por mais que tenha tido o privilégio de ter uma infância financeiramente estável, tinha amigos para quem não era assim. Conhecia os problemas do Brasil. Tenho muita da educação dos meus pais, nunca tivemos extravagâncias. Sempre me habituaram a ir atrás das coisas e fui juntando o dinheiro através de desenhos que fazia, de pinturas, de ilustrações. Também vendia pulseirinhas e comecei a promover sessões de música em casa para quem pudesse contribuir.

E as prendas dos aniversários?

Sempre que fazia anos, ou no Natal, pedia à família para dar dinheiro e ia juntando. Até que juntei um valor que achava que dava para gravar um disco e descobri que era um décimo do que precisava. E desisti de gravar um disco [risos]. Tinha 14 anos. Mas quando fiz 15 anos e arrecadei mais presentes, aumentei o mealheiro e descobri um estúdio no qual consegui gravar. Fui para casa, treinei e gravei. Consegui fazer quatro músicas. O dono do estúdio disse que ia mixar e editar as músicas, que consistiam em voz e guitarra. Quando ele ouviu, adorou-as. Uns dias depois, disse-me que estava com os amigos, trocaram umas ideias e acrescentaram instrumentos. Foi assim que começou e eles foram meus músicos durante vários anos.

Já falas com a tua filha sobre poupar?

Na verdade, é ela que fala comigo. Primeiro, interessou-se por gastronomia, chegou a ter aulas de cozinha; depois, por economia e até por política. Como lê muito, comecei a comprar-lhe alguns livros de literacia financeira. É uma criança interessada em viabilizar financeiramente os sonhos. Quando ela diz que tem vários projetos e tem de começar a ganhar dinheiro para os concretizar, as pessoas até olham para mim como se fosse eu que estou a sempre a dizer-lhe que ela tem de ser rica. Mas não, nós somos músicos. Mas ela interessa-se por ter independência financeira e só tem 9 anos. E faz muitas perguntas: quanto custa esta casa? E este carro? É muito engraçado, é pequena e já faz planos.

E fica admirada quando lhe dizes o preço das coisas?

Fica, porque não imagina se as coisas que são caras ou baratas. É engraçado colocarmo-nos na cabeça das crianças. Por exemplo, um spray de espuma é um ótimo custo-benefício para ela, que diz: “Só custa isto?” Mas uma casa já não. Eles têm os valores no universo deles, e depois querem diversão, experimentar. Nós já só queremos estabilidade.

Já a levaste ao supermercado para ver os preços dos produtos?

Ah, mas vamos. E depois começamos a fazer contas: qual o que custa mais, quanto fica a unidade. Compensa comprar este pack ou só um? É importante fazermos este raciocínio.

10 perguntas-relâmpago a Mallu Magalhães

1. O que fazes quando passa uma música tua na rádio?

Aumento o som e comemoro. Canto junto, às vezes filmo-me.

2. Qual é a música que o público mais gosta?

Acho que é a Mais Ninguém. [ndr: música da Banda do Mar].

3. Que música gostarias de ter escrito?

Girl From the North Country, do Bob Dylan. É linda. Desde a imagem até à espécie de amor que ele descreve. É um afeto único que não pede em troca. E o Dylan é uma poesia do início ao fim e é uma estética que parece uma caminhada, uma estrada.

4. Qual o teu sítio preferido para compor?

Gosto muito de compor em movimento: no carro, a andar ou de avião.

5. Quem te deu o melhor conselho no mundo do espetáculo e qual foi?

Se calhar não é bem um conselho, mas eu senti-o como tal. Falo de um encontro com a Rita Lee e de outro com a Elza Soares. As duas foram extremamente generosas e fiquei completamente no chão diante da grandeza delas. Nunca quis ser famosa, mas ao poder encontrá-las, dois ícones, fiquei entregue. E, nessa entrega, recebi de volta generosidade afetiva. Foi tão bonito. A Rita abraçou-me e disse que a minha música era linda. E a Elza também. Agarrei-me a estes momentos quando tive dúvidas.

6. Nas entrevistas, qual a pergunta que mais te fazem?

“Como consegues conciliar a maternidade com a carreira” é uma pergunta recorrente.

7. Qual foi o primeiro álbum que compraste com o teu dinheiro?

É difícil saber qual, porque comecei a comprar álbuns em vinil muito cedo. Mas diria que foi um disco da Billie Holiday, não me lembro exatamente qual.

8. Qual o objeto mais caro que compraste?

Deve ter sido um instrumento [risos]. Aliás, talvez o computador. Porque não sou de comprar instrumentos muito caros, não posso ter uma coisa muito sensível porque sou meio desastrada. Preciso de instrumentos resistentes e que, se caírem, sobrevivam.

9. Diz-nos uma coisa de ti que o público não saiba.

Há algumas que não quero que saibam [risos]. Eu escuto um disco de cada vez, todos os dias, incessantemente. Durante meses, até enlouquecer.

10. Som, palavra ou imagem: o que te inspira mais?

O som, porque fico mais vezes arrepiada com o som, apesar de amar as imagens e gosto muito das palavras. A palavra leva-me à imagem. O som tem um efeito mais físico.

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