Quando teremos uma semana de trabalho de quatro dias?

Quando teremos uma semana de trabalho de quatro dias?
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á cada vez mais empresas a ponderar reduzir a semana de trabalho de cinco para quatro dias. Os especialistas apontam inúmeras vantagens, entre as quais maior produtividade, equilíbrio entre a vida familiar e profissional e menor impacto ambiental. Será que a ideia tem pernas para andar?

Em agosto de 2021, a tecnológica portuguesa Feedzai reduziu a semana de trabalho dos seus colaboradores de cinco para quatro dias. A experiência durou um mês e permitiu mais quatro dias livres a cada colaborador, sem perda de remuneração. Neste unicórnio português – empresa tecnológica com uma valorização de mais de mil milhões de dólares – o dia mais esperado passou a ser a quinta-feira, e não a tradicional sexta-feira.

“Valorizamos o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional e queremos que o nosso talento tenha tempo para descansar e sentir-se bem. Agosto pareceu-nos uma boa altura para avançarmos com um teste por nossa conta, para ver como funciona e perceber a recetividade dos nossos colaboradores”, explica Catarina Fonseca, diretora de comunicação da Feedzai, à Revista Montepio digital.

A ideia pode levar muitos empresários a torcerem o nariz: porquê pagar mais para ter trabalhadores durante menos tempo na empresa? Mas a verdade é que o tema entrou de rompante na agenda político-empresarial global e tão cedo não sairá de lá. Isto porque a semana de quatro dias, como é conhecida, está a ser apresentada como a “bala de prata” que poderá resolver, ou mitigar, um conjunto de problemas que afetam as sociedades atuais: stress constante, baixa produtividade, dificuldade na conciliação entre trabalho e família e poluição ambiental, entre outros. E, ao contrário do que à primeira vista pode parecer, as empresas podem até ter muito a ganhar ao darem aos seus funcionários a possibilidade de trabalharem menos.

“A semana de trabalho de quatro dias é apenas uma das muitas iniciativas que temos implementado para promover este bem-estar. O feedback da experiência noutros países, como a Islândia, foi positivo e ficámos muito intrigados com a ideia”, acrescenta Catarina Fonseca. Em agosto de 2022, a semana de quatro dias voltará à Feedzai para mais um período de experiência. Virá para ficar?

Alteração laboral está prevista na lei

A semana de trabalho de quatro dias já está prevista na lei portuguesa: o artigo 209.º do Código do Trabalho é claro: se trabalhador e empregador acordarem, podem concentrar-se em quatro dias as horas de trabalho. Ou seja, ao trabalhar doze horas por dia, com pausas definidas por lei, em vez das tradicionais oito, o colaborador folga três dias por semana em vez dos habituais dois.

Contudo, a verdadeira semana de quatro dias, aquela que está a ser proposta por diversas organizações e governos por todo o mundo, implica uma redução do horário de trabalho. Há diferentes modelos de implementação – com ou sem perda de remuneração – e há desafios consoante os setores de atividade. O debate, por cá, está apenas a começar. Empresas como a Feedzai ou a farmacêutica Roche dão os primeiros passos, mas outros países já fazem testes em grande escala para verificar se esta é, ou não, uma boa ideia.

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Uma mudança estrutural

O português Pedro Gomes, professor do colégio de Birkbeck – que pertence à Universidade de Londres -, estudou a semana de quatro dias, a respetiva aplicabilidade e as vantagens que daí podem advir. Compilou o resultado da sua investigação no livro Sexta-Feira é o Novo Sábado, publicado em fevereiro pela Relógio d’Água. À Revista Montepio digital, o professor universitário recorda que a atual semana de cinco dias foi fruto de anos de reivindicações e de alterações nas sociedades mundiais.

“A semana de trabalho é uma construção social, política e económica e evolui à medida que as sociedades crescem. No século XX, trabalhou-se seis dias por semana e passou-se de seis para cinco. No século XXI, a semana de quatro dias é uma forma melhor de organizar a economia”, defende. “Pode chegar mais rápido ou mais devagar, mas vai ser uma realidade”, vaticina o académico.

Os sinais estão à vista. Hoje, muitos profissionais preferem usufruir de um salário menor para terem mais tempo para si. Esta tendência é muito usual para quem opta por trabalhar em part-time em países como o Reino Unido ou os Países Baixos. “A maioria destas pessoas escolheu trabalhar menos um dia por semana com um corte proporcional de 25%. Muitas vezes, sacrificando perspetivas de carreira dentro da empresa”, diz.

Mesmo entre as organizações, já existe vontade de fazê-lo: “Há muitas empresas que estão a implementar a semana de quatro dias como prática de gestão porque se apercebem que melhora o negócio”, garante. Um dia adicional de descanso faz com que os trabalhadores produzam mais e de uma forma mais eficiente, permitindo-lhes executar tarefas de forma mais intensiva. “Exatamente por estarem mais descansados”, explica Pedro Gomes.

Mais produtividade, menos custos

As empresas podem poupar, de igual modo, através da redução do absentismo que uma semana reduzida promove. Menos absentismo significa menos custos. Por exemplo, reduzir as horas pagas a freelances ou a outros profissionais independentes, cujos honorários são elevados, para substituir os colaboradores doentes. Ou podem beneficiar de menos erros, e menos desperdício, em atividades como a industrial, na qual o cansaço dos trabalhadores pode ser sinónimo de produtos defeituosos. “Quando estamos esgotados podemos estar lá a fazer o nosso trabalho mas não o faremos tão bem”, afirma.

Reter os trabalhadores também se torna mais fácil com a semana de quatro dias, numa era em que o poder passou para o lado da força de trabalho, como prova o mercado laboral dos Estados Unidos, a lidar com demissões em massa de profissionais descontentes. O desespero das empresas para encontrar e manter funcionários fá-las apresentar vantagens laborais para cativar talento. E é aí que entra a semana de quatro dias. Nas empresas que têm implementada a semana curta como prática de gestão, as pessoas “demitem-se muito menos, trocam menos de emprego e a mão-de-obra é muito mais estável”, diz Pedro Gomes. Resultado? Menos custos com recrutamento e formação.

Em agosto de 2022, a sala onde os colaboradores da Feedzai relaxam (na foto) ficará vazia uma vez por semana.

Quais as perspetivas para Portugal?

Todos os setores de atividade nacionais poderão ganhar com a semana de quatro dias. No entanto, segundo Pedro Gomes, é natural que alguns setores “não tenham tantos ganhos em produtividade”.

Na linha da frente das formas possíveis de ajustamento encontra-se o corte de salário. Porém, não é a única. O reequilíbrio pode vir com um ajuste de horas noutros dias de trabalho ou com os ganhos de produtividade inerentes a esta redução. “Em alguns setores de atividade talvez seja necessário aumentar a contratação, o que pode ser compensado com o aumento da produtividade”, acrescenta.

As empresas poderão trocar os aumentos salariais por dias livres, promovendo uma “implementação progressiva deste tipo de semana”, sugere. A contratação de mais profissionais, solução a que alguns setores teriam de recorrer, permitiria “reduzir o desemprego tecnológico, diminuindo o ritmo dos despedimentos devido à substituição da mão-de-obra por máquinas”.

Os benefícios para a economia portuguesa, esses, podem ser múltiplos. A começar pelo aumento do consumo de produtos e serviços em setores como o da cultura, lazer e turismo, graças ao tempo livre extra. “Onde virão alemães, franceses e holandeses passar o fim-de-semana que não ao sul da Europa?”, pergunta Pedro Gomes.

Mas a grande vantagem identificada pelo professor da Universidade de Londres está na possibilidade de os profissionais, com mais tempo livre, se dedicarem a outras atividades, mais próximas dos seus interesses e ambições, e que possa trazer-lhes rendimento. “O tempo livre pode dar origem a uma empresa que não implica só dinheiro. Uma empresa significa dinheiro e tempo livre para explorar essa ideia. Quando não se tem dinheiro para financiar esse tempo livre, as pessoas não têm outro remédio a não ser terem um trabalho”, diz. Uma sexta-feira livre “daria mais liberdade às pessoas para decidirem o que fazer com o seu tempo, [usando-o] até para trabalhar”, acrescenta.

Não, não é para todos

Paulo Marques, professor do departamento de Economia Política do ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), considera que a implementação da semana de quatro dias vai depender de uma variável muito importante num país, Portugal, com um problema salarial de décadas: a remuneração. “Se a redução de horário implicar perda de rendimentos, poderá haver trabalhadores com rendimentos mais altos que podem estar dispostos a aceitar uma redução do tempo de trabalho com perda”, diz. No fundo, é como comprar tempo livre consoante a capacidade económica. “Já para as pessoas com rendimentos mais baixos, uma perda de rendimento é algo difícil de explicar.” Sobretudo num país onde um quarto da população aufere o salário mínimo.

Uma realidade que espelha também um país cada vez mais a duas velocidades, considera Paulo Marques. Se uma eventual implementação da semana de quatro dias não implicar redução salarial, “há setores em que isso pode ser mais aplicável e outros menos aplicável, como os exportadores, que competem com base nos salários baixos”.

Para estes setores pode ser algo difícil de acomodar, principalmente num contexto em que houve um aumento do salário mínimo nos últimos anos. A expansão recente de setores como o do alojamento, o imobiliário e a restauração, que têm um peso muito grande na economia, impediria uma hipotética implementação, por decreto, da redução do tempo de trabalho sem corte salarial.

Mas há outro Portugal. Um país que viu o número de programadores informáticos aumentar de 20 mil para 90 mil trabalhadores nos últimos dez anos, e que duplicou o número de trabalhadores nas áreas científicas, segundo dados citados por Paulo Marques. Nestas áreas, a semana de quatro dias tem mais possibilidades de se instaurar, sendo até desejável que tal aconteça. Os empregos “do meio”, esses, “tenderão a perder relevância”, o que reforça a ideia de um país a duas velocidades.

Os profissionais da área da programação podem mais facilmente adaptar-se à semana de trabalho de quatro dias

Espanha já testa nova semana

Se a discussão em Portugal ainda agora começou, noutros países já vai adiantada. O pioneiro foi a Islândia, que conduziu uma experiência entre 2015 e 2019 junto de 1% da força laboral do país – cerca de 2 500 trabalhadores. A experiência deu frutos: 86% dos trabalhadores daquele país já usufruem de uma semana laboral de quatro dias, segundo dados da associação islandesa Alda. Entretanto, outros países seguiram o exemplo e já conduziram, ou perspetivam conduzir, experiências deste género.

Mais perto de nós, em Espanha, a proposta do partido Más País, um dos parceiros do governo liderado por Pedro Sánchez, foi incluída no Orçamento do Estado para 2022. Terá uma dotação de 10 milhões de euros e avançará em meados deste ano. O projeto-piloto implicará ajudas financeiras às 160 empresas participantes – entre 2 000 e 3 000 euros. Estas terão de chegar a acordo com os trabalhadores para a redução do horário laboral para as trinta e duas horas semanais: apenas quatro dias de trabalho e sem redução salarial.

O deputado da assembleia municipal de Madrid, Héctor Tejero, do partido Más País, será o coordenador da experiência, que se prolongará por um ano. À Revista Montepio digital, o responsável refere que a redução da jornada laboral pode ter impactos na saúde física, mental, na vida familiar e até no meio ambiente.

“A primeira vantagem seria vivermos melhor. Trabalhar menos dias faz com que os trabalhadores melhorem a saúde física e mental, uma das principais causas das baixas médicas. Além disso, melhoraria a conciliação com a vida familiar e fora do trabalho, uma exigência generalizada hoje em dia”, salienta. De acordo com os inquéritos que conduziram a este projeto-piloto, 70% dos espanhóis são favoráveis a esta medida.

O ambiente agradece

Outro dos benefícios desta medida, caso ganhe proporções nacionais ou até globais, é ambiental. Segundo Tejero, o impacto no ambiente de um dia sem movimentos pendulares de casa para o trabalho, e vice-versa, será assinalável. “Sabemos que em muitos países trabalhar menos um dia por semana pode diminuir as emissões de gases de efeito estufa ao reduzir as deslocações para o trabalho”, sublinha.

O estudo Stop the Clock, desenvolvido em março de 2021 pela Platform London, coletivo focado em ações de defesa do meio ambiente, fez as contas relativamente ao efeito ambiental de uma semana de quatro dias no Reino Unido. De acordo com o estudo, uma jornada laboral mais curta reduziria as emissões britânicas de gases de efeito estufa em 21,3% por ano, ou menos 127 milhões de toneladas de CO2 anuais até 2025. É o equivalente às emissões de dióxido de carbono anuais da Suíça. E o equivalente, segundo o documento, “a retirar das estradas 27 milhões de automóveis”. Na prática, todos os carros de particulares do Reino Unido.

Outro estudo, desta vez da Universidade de Massachusetts Amherst, estima que uma redução de 10% no tempo trabalhado reduziria em 14,6% a pegada carbónica. Já uma redução de 25% equivaleria a uma quebra de 36,6% da pegada carbónica total no ambiente. Entretanto, os autores aludem igualmente a argumentos económicos para a redução da semana laboral: como a possibilidade de, em sociedades mais produtivas e de população em crescimento, poder vir a ser necessário diminuir as cargas horárias para evitar problemas de desemprego em massa.

Do lado das empresas, Héctor Tejero defende também haver benefícios: “As empresas que estão a adotar a semana laboral de quatro dias têm partilhado melhorias nos resultados: os trabalhadores mais descansados rendem mais e cometem menos erros. Por outro lado, diminui a taxa de rotatividade dos funcionários, o que aumenta a sua formação e envolvimento”, diz. “É, além disso, um poderoso mecanismo de captação de talento, um dos principais motivos pelos quais as empresas estão a adotá-lo. Fomentar a redução da jornada laboral deve levar as empresas a impulsionarem a digitalização e a reformarem a sua organização produtiva de forma a melhorarem a produtividade. Tudo isto faz com que a implementação de uma semana de quatro dias possa ser feita sem ajudas do Estado. E, na verdade, muitas empresas estão a fazê-lo”, conclui.

Menos carros a circular nas cidades, como retrata esta imagem, no Porto, é uma mais-valia da semana de quatro dias

Sindicatos são favoráveis à mudança

Os sindicatos, entretanto, estão atentos. À Revista Montepio digital, a secretária-geral da CGTP-IN, Isabel Camarinha, defende que “a redução do tempo de trabalho semanal para o máximo de trinta e cinco horas sem perda de retribuição, a par do aumento geral dos salários para todos os trabalhadores e da erradicação da precariedade, constitui uma das principais reivindicações e prioridades da ação e da luta sindical”.

“A redução do horário de trabalho ao longo da História, resultado da luta de gerações de trabalhadores, representou sempre um avanço civilizacional e é uma justíssima exigência tendo em conta os avanços da ciência e da técnica, com o consequente aumento da produtividade”, afirma a líder da intersindical. “Para melhorar as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores o que se exige, de facto, é a redução para o limite máximo de trinta e cinco horas de trabalho semanal sem perda de retribuição.”

Do lado da UGT, o secretário-geral, Carlos Silva, diz à Revista Montepio que “a semana de quatro dias deve ser inserida num debate mais amplo, o da redução efetiva do horário de trabalho. Até como contributo para a conciliação da vida pessoal, familiar e profissional”.

E ecoa a sugestão de Paulo Marques no que toca à melhor forma de instaurar a semana de quatro dias: “A negociação coletiva pode, e deve, a nosso ver, ter um papel muito importante”, considera, por ser “uma matéria que deve ser objeto de análise e discussão tendo em conta as realidades diferentes que se verificam entre os vários setores de atividade”. Deve, por isso, ser debatida em sede de concertação social “para se definirem e consensualizarem os critérios para a sua aplicabilidade”, resume.

As duas grandes centrais sindicais estão no mesmo comprimento de onda em relação às propostas para reduzir a semana laboral: sim, a favor – mas sempre sem sacrificar o rendimento dos trabalhadores.

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