a relação homem-máquina, tudo é dual. Há entusiasmo e medo, progresso e regressão, simpatia e apatia. Não existe uma visão negra ou clara de como se alteraram as formas de comunicarmos e de nos relacionarmos, mas, ao entrarmos em novas noções de tempo e espaço, muito está a mudar. A publicitária Susana Albuquerque e o psiquiatra Júlio Machado Vaz ajudam-nos a pensar o futuro da interação humana.
“Prometeram-nos carros voadores. Em vez disso, deram-nos 140 caracteres.” Em 2013, o empreendedor norte-americano Peter Thiel, fundador do PayPal, declarou, com esta frase que se tornou icónica, a morte da inovação. Não da inovação em si, essa sempre existiu, mas dos avanços tecnológicos que podem realmente fazer a diferença. Durante anos, até décadas, preparámo-nos para a era digital. Mas foi preciso que a pandemia mandasse o mundo para casa para que a transição do analógico para o tecnológico chegasse a todas as franjas da população.
“A pandemia mudou o consumo digital e a perceção que as marcas tinham do consumo digital”, explica a publicitária Susana Albuquerque. Um exemplo: até então, existia uma “ideia feita” de que os mais velhos não usavam telemóveis, ou não os usavam para consumir informação e fazer encomendas, por exemplo. “Isso acabou. As pessoas perderam o medo do ‘bicho papão’ do digital e houve uma digitalização à bruta. Não tiveram alternativa”, revela a diretora criativa da agência de publicidade Uzina.
“Passámos a ter acesso a um computador no telefone, em que estamos permanentemente ligados a coisas que nos interessam, nas redes sociais, às marcas, aos canais, aos influenciadores, aos blogs, à micromedia. Essa foi a grande revolução”
Em março de 2020, perdeu-se o medo de fazer compras online. Este salto na inclusão digital impactou o modo como a comunicação comercial começou a chegar até nós. “Hoje, não há campanha [de publicidade] que não tenha uma expressão digital. Mesmo uma campanha de televisão para uma marca de supermercados, por exemplo, tem sempre presença digital e nas redes sociais, porque as pessoas querem ver como é que a história continua, como é que interagem”, garante a criativa.
Os números explicam esta mudança. De acordo com o relatório “O Setor das Comunicações”, publicado em 2021 pela Autoridade Nacional das Comunicações (ANACOM), as encomendas online aumentaram 23,2% em 2020 e 15,1% em 2021. Também o tráfego médio por acesso de internet fixa aumentou mais de um terço nestes dois anos: 32,8% em 2020 e 32,6% em 2021.
Com grande parte da população vidrada no telemóvel ou no computador, as marcas simplificaram o acesso aos seus produtos online. No entanto, a jornada do consumidor, ou seja, o caminho que as pessoas percorrem até comprar um produto, tornou-se mais complexa. “Após verem o produto [no anúncio publicitário], há um click direto para o site. Podemos saber mais sobre esse produto ou até comprá-lo. Quem é que hoje em dia compra eletrodomésticos sem comparar preços ou ler as opiniões dos outros consumidores?”, questiona Susana Albuquerque.
Para as marcas, apelar ao público é hoje mais exigente do ponto de vista financeiro, uma vez que têm de estar em todos os canais onde os consumidores passam o seu tempo, seja na velhinha televisão ou nas redes sociais. O que significa isto? Ganhar a atenção dos consumidores é cada vez mais complicado.
“Temos um consumo de smartphones per capita superior ao da população. Passámos a ter acesso a um computador no telefone, em que estamos permanentemente ligados a coisas que nos interessam, nas redes sociais, às marcas, aos canais, aos influenciadores, aos meios que nos interessam, aos blogs, à micromedia. Essa foi a grande revolução”, explica a também presidente do Clube de Criativos de Portugal.
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As marcas como criadoras de conteúdo
A fragmentação de meios trouxe novos desafios aos publicitários e às marcas. A ideia, o elo central de qualquer campanha de comunicação, continua a ter a importância que tinha desde o início da publicidade. Mas sofisticou-se. “Falamos muito dos conteúdos de marca, de ideias que possam ter algum interesse para as pessoas e que as pessoas tenham interesse em procurar, que não desliguem completamente”, explica a publicitária. Quem diria, há uns anos, que assuntos como a saúde mental chegariam às marcas? “É o grande tema do momento”, concorda Susana Albuquerque. “É a epidemia depois da epidemia.”
No mundo pós-pandémico, as marcas reclamam para si um ponto de vista e querem ter algum tipo de intervenção na sociedade. Seja a falar de saúde mental, de pais separados, zangas familiares, da causa LGBT ou do direito à diferença. O que há muito acontecia internacionalmente ao nível publicitário 一 entrar na vida das pessoas 一 chegou finalmente a Portugal. “Obviamente que o objetivo é vender produtos ou criar afinidade para a marca, mas ao mesmo tempo toma-se uma posição em relação à sociedade, com o objetivo de criar mais empatia e gerar maior conexão com as pessoas”, argumenta a publicitária.
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O futuro da publicidade
Com quase 30 anos de carreira, Susana Albuquerque já viu de tudo na sua área. “Está sempre a mudar”, sorri. Nos últimos meses, a conversa deixou os meios mais tradicionais e viajou para a inteligência artificial (IA), o metaverso e outros universos que serão “espaços mais sofisticados de interação digital” e que trarão “experiências mais compensadoras em relação ao que estamos habituados”. Realce para plataformas como Dall-e e Midjourney, que permitem criar imagens realísticas a partir de uma informação escrita, e a recente coqueluche da IA, o ChatGPT, um chatbot especializado em diálogo com um conhecimento sem limites da cultura, história, experiência e sentimento humanos.
“Em quase 30 anos já vi muitas inovações a aparecerem. Quando comecei a trabalhar havia uma secretária que datilografava à máquina os guiões dos copies e maquetistas a decalcar letras de livre acesso, para fazer a composição das maquetes”, recorda Susana. Dentro de uma década, a publicitária antevê uma “constante transformação nas ferramentas tecnológicas” ao nosso dispor. Qual a diferença em relação às décadas anteriores? Os saltos tecnológicos chegarão cada vez mais rápido. Porém, não retirarão ao Homem a primazia da criatividade e da inteligência.
“Não vai nascer um Van Gogh no Midjourney nem um Saramago no ChatGPT. Serão ferramentas de experimentação e brainstorming interessantes, que vão abrir caminhos muito rapidamente e desbloquear o pensamento. Mas a ideia, a criatividade e a capacidade de dar uma resposta a um problema completamente inesperado não virá daí, quero acreditar.”
Teclo, logo existo
Na linguagem, computacional e humana, estão muitas chaves. Diferentes teóricos sustentam, aliás, que a linguagem simbólica é o principal fator a distinguir o homem dos restantes animais. Dizemos “olá” e, a partir daí, podemos comprar um carro ou começar um namoro. Mas a forma como comunicamos está a mudar e não é só na ótica do consumo. Como irá a inteligência artificial interferir nas relações humanas? As conversas em tempo real perderão terreno para mensagens digitalmente fabricadas? Comunicaremos através dos nossos metaversos? Implantaremos tecnologia nos nossos corpos? As grandes decisões das nossas vidas partirão de curtos chats? Iremos apaixonar-nos por humanóides?
“As tecnologias de IA poderão apoiar-nos mental e emocionalmente, ajudando-nos a digerir o dia que passa, oferecendo um ombro amigo àqueles que desejam descarregar emoções ou simplesmente sendo um amigo com quem poderemos compartilhar experiências e criar memórias”, antevê Elyakim Kislev, professor na Universidade Hebraica, em Israel, e autor do livro Relationships 5.0. Para o teórico, nesta era, há uma separação tão frágil entre o material e o virtual que as relações não acontecem apenas através da tecnologia mas com a tecnologia. Ou, nas palavras de Júlio Machado Vaz, o psiquiatra, psicoterapeuta e sexólogo que levou as relações para a rádio há mais de 30 anos, “há cada vez mais pessoas para as quais o mundo virtual se torna mais real do que o real”.
“Há pessoas que me dizem que têm dificuldade em conhecer gente e que, no Tinder, se torna muito mais fácil fazê-lo. Antigamente conheciam-se pessoas entre os amigos, nos jantares, nas confraternizações. Hoje essas reuniões escasseiam.”
Abandonemos, por instantes, o futuro 5.0, recuando a 2012. Sean Rad apresenta uma invenção radical numa feira em West Hollywood: uma plataforma para facilitar encontros entre dois perfeitos desconhecidos num perímetro geográfico predefinido, o Tinder. Dois anos depois, inicia-se aquilo a que alguns analistas consideram uma revolução cultural e sexual, talvez a maior após o advento da pílula anticoncecional, na década de 1960. Hoje, o Tinder tem mais de 75 milhões de utilizadores ativos e está a contribuir para uma nova visão das relações amorosas.
Há quem compare a utilização da plataforma ao consumo de qualquer outro bem, tornando as relações humanas em mercadoria. Outros, numa perspetiva menos apocalíptica, veem-na como uma solução para o enclausuramento e individualização contemporâneos. É o caso de Júlio Machado Vaz. “Na consulta, há pessoas que me dizem que têm dificuldade em conhecer gente e que, nesta aplicação, se torna muito mais fácil fazê-lo. Antigamente conheciam-se pessoas entre os amigos, nos jantares, nas confraternizações. Hoje essas reuniões escasseiam, porque temos vidas muito rotineiras”, contextualiza o profissional, olhando para o Tinder mais como uma espécie de gigantesca mesa de jantar onde podemos escolher onde nos sentamos. Em muitos casos, o match resulta em casamento e filhos, como enfatiza o médico. “Na Suíça, entre 25 e 30% das relações existentes são de pessoas que se conheceram online. Parece-me que o Tinder mudou em alguns aspetos. Era quase exclusivamente para encontros de índole sexual e neste momento não. A natureza parece ter-se tornado mais soft.” Seja qual for o intuito do seu uso, plataformas de encontros como esta tiveram um efeito inquestionável: aumentaram a velocidade e a facilidade com que se encontram potenciais parceiros. Não simplificaram a tarefa de encontrar o amor, mas reorganizaram-na, mantendo o risco e o erro como variáveis.
A questão que se coloca é se as pessoas e as relações humanas mudaram com plataformas como o Tinder? Em conversa com a Revista Montepio, alguns utilizadores anónimos partilham perceções: “A facilidade de desligar, de desaparecer, é maior. Se eu não desperto o interesse da outra pessoa logo num primeiro encontro, ela já não vai ter o trabalho de querer conhecer-me melhor. Vai à procura de outra.” Por outro lado, “ter sexo tornou-se mais fácil”. “Posso sentar-me no sofá de casa a ver televisão, enquanto escolho com quem vou estar à noite. E essa facilidade fez-me ver o sexo e as relações de outra forma, com menos preconceitos, mais liberdade e com a noção de que tudo pode mudar, de que não tenho de ficar presa a uma situação de que não gosto.” Ainda outra impressão: “Hoje é impossível conhecer pessoas num bar ou na rua, fora das tecnologias. As pessoas tornaram-se muito fechadas. Se tento conhecer alguém, ficam a olhar para mim como se fosse um extraterrestre.” Por último: “O Tinder é uma frustração. Já instalei e retirei a app milhões de vezes. Ligo-me quando já me esqueci das desilusões que os diferentes encontros me provocaram ou quando me sinto muito sozinha. A verdade é que parece que ninguém se quer comprometer, porque é demasiado fácil trocar de parceiro.”
Dossier Futuro Cultura e Lazer
Como estão a vida noturna e o mundo do espetáculo a reagir à sociedade dos ecrãs?
Esta inquietação e incerteza poderão ser parcialmente justificadas pelo diagnóstico de Júlio Machado Vaz da vida contemporânea: “A sociedade em que vivemos é individualista, competitiva, desconfiada, avessa à espera e à dor. Em países como o Japão e a Coreia do Sul, os inquéritos dizem que os jovens consideram as relações trabalhosas e perigosas, até o sexo puro e duro se vem tornando menos popular.” Um cenário que se acentuará no futuro? “Espero que não. Gosto de pensar que é melhor morrer depois de colecionar nódoas negras e momentos felizes do que olhar para trás e contemplar um deserto asséptico”, responde o psiquiatra.
Há ainda outra mudança que o psiquiatra constata, mas que não lhe parece estar diretamente relacionada com o uso das tecnologias: deixou-se para trás o discurso da pessoa ideal. “As pessoas descobriram que não há apenas uma pessoa que pode fazê-las feliz. Hoje falam-me mais do tipo de relação que ambicionam e são mais ciosas dos seus tempos e espaços, desejam o entrelaçar de duas liberdades”, analisa.
Crescer na auto-estrada
É injusto, no entanto, tentar ilustrar mudanças nas relações humanas olhando apenas para as plataformas de encontros e esquecendo o impacto das restantes tecnologias. Como diz Júlio Machado Vaz, há “um aumento preocupante de pessoas que desenvolvem uma defesa clara na tecnologia”, ou seja, que se refugiam atrás dos ecrãs da vida no exterior. “Os mais novos estão a crescer numa sociedade com uma velocidade excessiva em termos psicológicos e não há nenhum colega meu que diga o contrário. É uma sociedade que tem vindo, em muitos aspetos, a pensar de um modo mais superficial, mais entrecortado, e a tecnologia tem muito a ver com isso. Não é a mesma coisa comunicar por SMS ou com alguém num café. As competências relacionais no mundo real não são as mesmas do mundo virtual”. Poderemos, então, ser pessoas com menos competências relacionais no futuro? “Nós já estamos a perder competências relacionais”, responde Júlio Machado Vaz.
Por que nos detemos, então, no mundo virtual? Para o psiquiatra, trata-se de uma questão de conforto e comodismo. “O ambiente real é muito menos controlável. As possibilidades de apagar, bloquear, etc. são sensações reconfortantes que a tecnologia dá. Depois, a tecnologia também nos propicia mantermo-nos à distância do sofrimento do outro, seja uma situação de luto, tristeza ou angústia. Só que a vida real também é feita de sofrimento.”
Seja porque o amor começa online ou porque acaba com o online – como “quando alguém lê as mensagens do telemóvel do parceiro” –, há uma certeza vincada no consultório deste terapeuta: “A tecnologia está omnipresente em todas as relações.” E veio para ficar.