A era dourada do ensino profissional?

A era dourada do ensino profissional?
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Fotografias de Ricardo Graça e Rodrigo Cabrita
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E

m nove anos, a remuneração dos jovens licenciados em Portugal caiu quase 15%, levando os salários para perto do patamar de quem optou pelo ensino profissional. Numa altura em que há profissões técnicas com elevada procura, a Revista Montepio conta a história de seis trabalhadores cujos percursos fogem ao convencional e que confirmam que uma carreira bem-sucedida assume muitas formas.

Joana Pereira, 33 anos, é hair colorist por conta própria: uma cabeleireira especializada em alterar a cor do cabelo dos seus clientes, desde transformações mais discretas a verdadeiras paletas de fazer parar o trânsito. A profissional é também o exemplo de que nem sempre as nossas escolhas iniciais ditam onde chegamos. Quem a vê na azáfama diária do seu salão de beleza está longe de imaginar que a hair colourist é, ainda, cientista.

Com uma licenciatura em Meteorologia, Oceanografia e Geofísica pela Universidade de Aveiro e um mestrado em Ciências do Mar pela mesma instituição, Joana tentou dar eco ao sonho que tinha desde o 7.º ano: ser cientista. Estagiou no Instituto Hidrográfico e chegou até a frequentar um doutoramento, mas a realidade da profissão ficou aquém das expectativas.

“Sempre quis ser cientista, mas havia uma parte do meu trabalho que era demasiado teórica. E não havia budget para idas ao mar”, explica Joana. O contexto nacional não ajudou. À época, Portugal estava sob a intervenção da Troika, em virtude do pedido de ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI). “Não havia bolsas e não tinha emprego na minha área, só estágios não remunerados.”

Perante a falta de perspetivas, Joana resolveu mudar de vida. Um “salto de coragem”, como a própria refere, aos 25 anos, mas que nem todos à sua volta compreenderam. “Ouvi imensos comentários, mas não liguei”, recorda, até porque percebeu que, ao seguir por uma área de cabeleireiro especializada em cor, conseguia juntar a ciência – numa vertente química – à arte. Para a técnica com formação de cientista, este tornou-se “o melhor de dois mundos”.
Mudar de carreira implicou ainda voltar ao início: aprender e treinar o ofício. Joana dividia os dias entre o curso técnico e o trabalho de assistente num salão de cabeleireiro. E oito anos depois do “salto” a opção valeu a pena? No balanço que Joana faz, é o facto de conseguir trabalhar por conta própria que lhe traz as maiores vantagens. “Tenho liberdade para gerir o meu horário, tempo para estar com o meu filho, possibilidade de viajar, pagar o que tenho a pagar”, afirma, enquanto reforça um aspeto que considera também fundamental: “Acordo todos os dias entusiasmada com o trabalho que vou fazer.”

“Sempre quis ser cientista, mas uma parte do trabalho era demasiado teórica. E não havia budget para idas ao mar”, conta Joana Pereira, hair colorist (foto: Rodrigo Cabrita)

Garantir emprego sem sair da cozinha

À procura de uma carreira bem-sucedida – e perante a incerteza do amanhã –, seguir o ensino convencional até à obtenção do “canudo” é uma estratégia seguida por muitos. Em 2021, metade dos jovens em Portugal com 20 anos encontrava-se a frequentar o ensino superior, com 47,5% dos jovens adultos a completar a licenciatura.

São números que atestam uma evolução extraordinária na qualificação do talento nacional – e que colocam Portugal acima da média europeia (41,2%) na educação universitária, segundo o Eurostat. Além disso, ter um curso superior dá, em teoria, maiores vantagens de empregabilidade – o desemprego entre licenciados é de 5,3%, contra 6,6% da média nacional, segundo o Ministério da Ciência e Ensino Superior. Mas a licenciatura nem sempre é sinónimo de boas condições de trabalho ou, sequer, de conseguir emprego na área em que se estudou.

Joana alterou a rota inicial que tinha escolhido. Já Carlos Duarte, 38 anos, manteve a direção que sonhou em criança – e que ganhou asas no ensino não universitário. Optou por um curso profissional de cozinha com a duração de três anos, equivalente ao 12.º ano, na Escola Profissional de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Fez dos sabores e dos tachos a sua vida e nunca sentiu na pele o desemprego.

Portugal é um país onde o setor hoteleiro tem um peso forte – e no qual o chef costuma ser apontado como um dos perfis mais procurados. O caso de Carlos confirma a regra. Depois dos estágios que frequentou no 2.º e 3.º anos do curso profissional, conseguiu emprego num hotel, como cozinheiro de terceira. Foi o início de uma carreira estável, em que foi progredindo gradualmente. Hoje é sous chef de cozinha no Novotel, em Lisboa, local onde trabalha há dezasseis anos.

Começar na área hoteleira após a conclusão do 9.º ano deu a Carlos algumas vantagens. A escola profissional integra um restaurante pedagógico, que ajuda na preparação dos estudantes e na perceção real do que os espera no mundo do trabalho. A profissão com que sonhou desde pequeno permite ter “boas condições salariais”, embora a vida pessoal sofra com o compromisso e a intensidade da profissão. “É bastante stressante e cansativo, não é para todos. É para quem gosta realmente disto – e eu gosto.”

Ao contrário de Joana, que sentiu o estigma de se ter afastado do doutoramento para ser cabeleireira, Carlos passou ao lado da carga negativa que o ensino profissional e técnico ainda terá. “Nunca tive preconceito por ter seguido o ensino profissional, mas porque a cozinha está na moda. Noutras áreas ainda há muito estigma”, afirma.

Os estigmas e preconceitos são, precisamente, um dos grandes desafios a ultrapassar, na opinião de Fernanda Torres, diretora do INETE – Instituto de Educação Técnica. A também professora defende que é importante que a sociedade reconheça o “ensino profissional como uma primeira opção, tão válida como o ensino científico-humanístico”.

Fernanda Torres não tem dúvidas de que o ensino profissional em Portugal é um “caso de sucesso” que contribui para o desenvolvimento económico do país. É célere, por isso, a destacar alguns dos indicadores do relatório “Avaliação do Contributo do PT2020 para a Promoção do Sucesso Educativo, Redução do Abandono Escolar Precoce e Empregabilidade dos Jovens”, de 2021, que demonstram que o ensino profissional consegue ter maiores taxas de sucesso do que os cursos científico-humanísticos (ensino regular) em termos de conclusão dos estudos, empregabilidade ao fim de seis a nove meses e remuneração.

“Nunca tive preconceito por ter seguido o ensino profissional, mas porque a cozinha está na moda. Noutras áreas há muito estigma”, nota Carlos Duarte (foto: Rodrigo Cabrita)

Quando o ensino profissional e o superior coexistem

Nem sempre escolher o lado profissional implica esquecer o ensino superior. É o caso de Dário Lomba, que começou pelo ensino profissional e hoje está a frequentar um mestrado, em simultâneo com o trabalho como consultor SAP na consultora Deloitte. Aos 22 anos, considera que o ensino profissional foi um dos alicerces que lhe permitiu chegar mais rápido ao patamar onde se encontra.

“O ensino regular não era algo que me atraísse. Preferi um curso mais prático.” A opção seguida permitiu-lhe alcançar o equivalente ao 12.º ano, mas beneficiando de uma parte prática que “acabou por facilitar a entrada no mercado de trabalho”. Foi o curso técnico do INETE que lhe alimentou o “bichinho” de ir mais longe. “Os professores incentivaram a mentalidade de pensar no futuro e ganhar profissionalismo”, explica Dário. Esse “pensar no futuro” levou-o a continuar a estudar Gestão no ensino superior assim que encerrou a sua caminhada no INETE. Depois da licenciatura, veio o mestrado em Sistemas Integrados de Apoio à Decisão, pelo ISCTE, que está a frequentar atualmente. “Em Gestão, o curso profissional dá-nos uma boa perspetiva, mas é fundamental continuar [no ensino superior]”, argumenta Dário.

Readaptação profissional: em busca de uma nova carreira

O mote pessoal de Filipe Viegas Pires, 43 anos, é ambicioso. “Nunca é tarde para podermos ser o que poderíamos ter sido.” O licenciado em História (área na qual nunca exerceu) resolveu, em 2021, fazer uma guinada no percurso de treze anos no setor livreiro e enveredar por uma das áreas da moda: as Tecnologias de Informação (TI). Um mês após concluir um bootcamp em software development, conseguiu garantir entrevistas de recrutamento todos os dias. Hoje, trabalha como business software tester na multinacional Siemens, com muita margem de progressão.

O mergulho no mundo das TI foi “extremamente desafiador”, explica Filipe. “Era o mais velho de todos os participantes no bootcamp, mas a verdade é que não me senti deslocado”, acrescenta. Na readaptação profissional, o tester afirma que o mais difícil é sair da zona de conforto.

Mas como podem os profissionais de outras áreas replicar este “salto de coragem” e concretizar, anos depois, uma readaptação laboral? Enquanto área técnica, é possível entrar no desenvolvimento de software com um curso especializado e sem conhecimentos prévios, explica Filipe. O formato de bootcamp, especificamente, é “caro e intensivo” – Filipe pagou 4500 euros por cinco meses de formação –, muito embora acabe por desbloquear diversas oportunidades de networking.

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Da rádio para o secretariado

Cláudia Vicente é outro exemplo de que é possível migrar de área profissional com sucesso. Ao fim de vinte e seis anos como locutora de rádio, a pandemia trocou-lhe as voltas e viu-se forçada a dar entrada no fundo de desemprego. Encontrou, aos 47 anos, uma oportunidade como administrativa na Associação Barafunda, de Alcobaça, que é também um Centro Qualifica (centros especializados na formação profissional, qualificação e aprendizagem ao longo da vida de adultos). Desde então, Cláudia tem aproveitado a oferta formativa da associação e hoje ostenta o diploma profissional RVCC (reconhecimento, validação e certificação de competências) de técnica de secretariado.

“Sinto-me mesmo realizada, com vontade de saber e fazer mais. Esta oportunidade deu-me a possibilidade de alargar as minhas competências, de crescer profissionalmente. O meu CV está a crescer, a expandir-se, e isso é sempre bom”, resume, orgulhosa.

O valor de uma profissão

“Uma licenciatura continua, hoje em dia e segundo as estatísticas, a dar mais emprego do que não a ter. Agora, se é um emprego na mesma área de formação ou se inclui um salário que corresponda às expetativas das pessoas, isso é outra história”, comenta Isabel Rufino, coordenadora do Centro Qualifica da Associação Barafunda. A especialista lembra que a aprendizagem ao longo da vida é muito importante: “Se uma pessoa com uma profissão técnica continuar a ter formação, a progredir na carreira, vai ganhar mais do que um licenciado.”

Em termos salariais, ter uma licenciatura ainda dá acesso a um ordenado melhor, mas a diferença em relação aos não licenciados tem vindo a diminuir. Em nove anos, a remuneração dos jovens licenciados em Portugal caiu quase 15%. Em 2010, um licenciado ganhava, em média, mais 95% do que um jovem com o ensino básico e mais 59% do que um trabalhador que apenas tivesse concluído o ensino secundário, aponta o Livro Branco “Mais e Melhores Empregos para os Jovens”. Em 2019, o patamar decresceu para 60% e 42%, respetivamente. Existem, contudo, áreas extremamente qualificadas com uma procura elevada – e o salário associado ao mestrado tem subido.

É tudo uma questão de médias e, na prática, os cenários podem alterar-se, dependendo das áreas profissionais e geográficas. Tendo em conta a escassez de oferta e o volume de procura em algumas áreas mais técnicas, estas podem acabar por ter uma valorização competitiva. As TI são uma das áreas com uma procura elevada, mas não são caso único. Sandra Carvalho, diretora de recrutamento da empresa de recursos humanos EGOR para o norte do país, acrescenta a construção e o setor da logística & supply chain como áreas em que a procura por perfis não licenciados e uma reduzida resposta do mercado fazem disparar os salários. O padrão dita que perfis muito técnicos, que aliam a exigência física a uma formação específica e a algum risco, havendo pouca mão de obra disponível, têm potencial para se tornarem áreas de elevada empregabilidade.

Desde que Ivan Domingues atualizou o seu perfil de Linkedin como industrial electrical technician, as propostas de trabalho não param de cair (foto: Ricardo Graça)

Ivan Domingues é eletricista industrial em Leiria e não tem dúvidas de que esta e outras áreas técnicas, como a da serralharia, são rentáveis e têm muita procura. “Temos licenciados em Portugal a ganhar o salário mínimo, mas numa profissão técnica como esta é possível ganhar mais”, destaca.

Depois de treze anos a trabalhar na área da manutenção de máquinas de venda automáticas, Ivan mudou de emprego em plena pandemia e dedica-se hoje a 100% à sua área de formação profissional: é técnico eletricista industrial na F. Caixeiro, fabricante de máquinas industriais.

Pelas mãos do técnico passa a responsabilidade de fazer o esquema do quadro elétrico ou eletrificar as próprias máquinas, muitas das quais de grandes dimensões. A procura nesta área é elevada e nota-se nas pequenas coisas. Desde que Ivan atualizou o seu perfil de Linkedin como industrial electrical technician, as propostas de trabalho não param de cair na caixa de mensagens.

O eletricista fez o ensino regular até ao 9.º ano na Suíça, país que elogia pela forma como a formação profissional é incentivada. Já em Portugal, concluiu a formação como técnico de eletrónica, automação e comando na Escola Profissional da Marinha Grande. Na altura, estava indeciso entre Eletrónica e Informática, mas optou pela primeira para se diferenciar no mercado – e não está arrependido.

“As áreas operacionais e técnicas com maior complexidade são as mais procuradas e aquelas em que os profissionais viram, no pós-pandemia, a sua mão de obra mais valorizada”, comenta Sandra Carvalho, da EGOR. A responsável realça ainda que as “grandes multinacionais do setor logístico, automotivo e aeronáutico” levam a que “os perfis com formação profissional adaptados a estes setores em Portugal estejam a ser rapidamente absorvidos e constantemente procurados, o que explica a sua valorização”.

Onde quer que o futuro do emprego nos leve, uma coisa é certa: é preciso estar atento ao potencial das carreiras técnicas e dos percursos não convencionais como uma opção válida, dependendo do perfil de cada pessoa. E, para licenciados ou não licenciados, vale sempre a pena recordar as palavras de Isabel Rufino: aprender sempre, ao longo da vida.

A Revista Montepio agradece a colaboração da Escola Profissional de Turismo e Hotelaria de Lisboa.

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