Como a saúde mental passou a fazer parte da nossa vida

Como a saúde mental passou a fazer parte da nossa vida
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Ilustração de Sérgio Veterano
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m apenas três anos, a saúde mental passou do silêncio parcial, em Portugal, para tema central de campanhas de publicidade. O trajeto que percorreu foi tão inesperado quanto necessário, mas há que agarrar esta oportunidade para ajudar as próximas gerações a lidarem com o “bicho desconhecido”.

Quando se fala de saúde mental, há um antes e um depois da pandemia. Em 2019, o tema era tabu em Portugal. Mas os sucessivos confinamentos e alterações no nosso estilo de vida abriram uma janela de oportunidade para falarmos sobre a doença mental e pensarmos, juntos, em estratégias para a combater. “Espero que daqui a 20 anos seja uma conversa tão natural que não ocorra a ninguém ser tema de entrevista”, revela-nos Marta Rebelo,                  ex-deputada e ativista pela saúde mental. “Se não soubermos aproveitar este momento e introduzirmos mudanças sérias na forma como trabalhamos a saúde mental do ponto de vista médico, e a resposta pública e privada à doença, vamos continuar na mesma.”

Crianças, adolescentes e adultos. Ninguém escapa ao assunto que, em 2022, foi protagonista de campanhas de publicidade de ficar com os olhos molhados. Marta Rebelo, que no final de 2022 assumiu publicamente a sua longa luta contra a depressão, diz que a pandemia, mas também a guerra na Europa e o aumento do custo de vida, puseram a nu um problema que já vinha de trás. “Por um lado, [o problema] agravou-se, por outro, tornou-se mais visível porque as pessoas sentiram-se mais amparadas. Mais normais em falar das suas circunstâncias anormais”, completa.

Em Portugal, a saúde mental sempre foi um assunto tabu. Mas se algo de positivo saiu desta pandemia foi a necessidade que muitos tiveram de falar do “bicho desconhecido”. “As pessoas sentiram-se tão no limite que deixaram de conseguir esconder [a doença]: o preconceito não é mais valioso que a sua sanidade”, lembra Marta Rebelo.

Mais jovens, mais vulneráveis

No que toca à saúde mental, há uma certeza. “Não estamos preparados, enquanto sociedade, para lidar com a maior parte dos problemas de saúde mental dos adultos. Mas, com os dos mais novos, menos ainda”, reflete Marta Rebelo. As crianças e adolescentes, que ainda estão na fase de descoberta do mundo, viveram circunstâncias únicas na sua vida. “Ficaram trancadas em casa sem poderem interagir com as suas tribos. Foi particularmente desafiante para a saúde mental destes miúdos”, explica a também consultora de comunicação.

Se a saúde mental é um problema com barbas, não é preciso tê-las para sofrer as suas consequências. Segundo o estudo Caring for children and adolescents with mental disorders (2015), da Organização Mundial de Saúde (OMS), 20% dos adolescentes podem ter um problema de saúde mental num determinado ano. E um artigo publicado no Archives of General Psychiatry, em 2005, concluiu que 50% dos problemas mentais começam até aos 14 anos e 75% até aos 24. “Em qualquer época da história, estes números são particularmente assustadores”, explica Marta Rebelo. “Mas se nos tentarmos pôr na cabeça dos miúdos nos últimos três anos, há desafios para os quais não estamos preparados”, continua Marta Rebelo, que elenca ainda questões às quais as gerações mais novas são “particularmente sensíveis”, como as ambientais. “A ecoansiedade é um problema mental grave entre as crianças e os adolescentes.”

Para os pais, há duas formas de estarem atentos aos problemas de saúde mental dos filhos. Por um lado, devem ver os sinais mais percetíveis e visíveis. “O isolamento, a tristeza, a irritabilidade, a perda de vontade de ficar com os amigos ou de fazer atividades que lhes eram prazenteiras e que de repente deixam de ser”, explica Marta Rebelo. Com a tarimba de quem já passou pelo mesmo, a ativista pela saúde mental diz que os pais devem, também, procurar em si próprios as ferramentas para compreenderem os filhos. “Se fizermos uma autoanálise, saberemos reconhecer melhor esses sinais”, explica. Até porque os pais já foram crianças e adolescentes e podem rever-se em algumas situações.

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Instituições: está (quase) tudo por fazer

Se a pandemia suavizou o tabu da saúde mental, a verdade é que faltam instituições e profissionais para resolver um problema há muito identificado. “É essencial que as crianças comecem a ter educação para a saúde mental e que comecem a ver os adultos à sua volta a tratar estes temas de uma forma despretensiosa, sem estigma, a falar abertamente”, recomenda Marta Rebelo. A escola pode dar-lhes ferramentas para gerirem a sua própria saúde mental. O problema? Há poucos psicólogos nas instituições de ensino. E os que há estão focados nos testes psicotécnicos e vocacionais.

Em Portugal, e para já, ficamos com os relatos de pessoas como Marta, que ao dar a cara pela saúde mental poderá fazer com que outros, mais ou menos mediáticos, se sintam “confortáveis em falar do tema”. “Há pessoas que dizem que fui corajosa por assumir os meus problemas de saúde mental. Mas foi uma questão de necessidade, pessoal e coletiva. O que ambiciono é que um dia a minha voz seja redundante neste assunto, porque falar abertamente dos nossos problemas de saúde mental é meio caminho andado para passarmos da doença mental para a saúde mental”, explica. A saúde mental das próximas gerações, diz a consultora de comunicação, depende do debate que se fizer hoje. “Os jovens de 20 anos estão muito disponíveis para falar sobre o tema, de forma mais aberta e com acesso a informação que gerações anteriores não tiveram. E isso já é uma diferença significativa. Mas os adultos ainda somos nós”, ressalva.

Acabar com o tabu passa muito pelo diálogo e aceitação de que não somos perfeitos. “Da mesma forma que eu vivi a minha doença de uma forma secreta, sem falar sobre ela, há milhões de pessoas que passaram anos a fazer o mesmo. Quando andamos neste jogo de sombras, não temos noção do que se passa no mundo. E voltamos sempre ao ponto de partida: falar muito sobre este tema, perceber que somos mesmo muitos. O normal é quase ser anormal”, conclui.

A Organização Mundial de Saúde chama a atenção para o facto de metade das doenças mentais surgirem até aos 14 anos (foto: Getty Images)

Não é o mundo, é como reagimos a ele

Se é verdade que a saúde mental sempre foi um tema encoberto, também podemos afirmar que as doenças e os desequilíbrios do foro psíquico sempre existiram. “Os desafios que tinha no consultório há 20 anos são mais ou menos os mesmos de hoje. Mas certos assuntos passaram a ser falados, a ser trazidos à luz. E isso faz com que as pessoas estejam mais alerta”, afirma João Beirão, chefe da equipa de Pedopsiquiatria do Hospital Dona Estefânia em Lisboa e membro do conselho diretivo da instituição de solidariedade social Casa da Praia.

Ainda assim, “há alturas em que algumas doenças são mais frequentes do que outras”. Hoje, por exemplo, são mais habituais no seu consultório privado os casos relacionados com linhas comportamentais obsessivas. Fruto de condicionantes externas, da genética? “Não sabemos dizer por que há estas ‘levas’, como dizemos na gíria. Em parte, tem a ver com genética, mas são necessárias várias gerações para que haja uma modificação eventualmente produzida pela adaptabilidade às circunstâncias em que se vive. É importante dizer que os estados de saúde não dependem só de fora [de contextos como uma crise económica ou uma guerra]. Dependem muito mais de como reagimos”, defende o psiquiatra.

Assim, a forma como nos preparamos para enfrentar o mundo e as suas imprevisibilidades tem um peso decisivo na saúde mental. Por outras palavras, “quanto mais as pessoas crescerem com uma segurança interna, mais aptas estarão para lidar com as situações externas”. E esta realidade não parece estar a cumprir-se nos tempos atuais. Nas consultas diárias, o médico percebe que muitas das alterações do comportamento com que se confronta ocorrem em crianças em que o tempo do desenvolvimento e de estímulo do pensamento não foi suficientemente forte.

“Eu aprendo na relação com o outro. Ela é construtiva ou parasitária? Dá-me segurança, confiança? Como aprendo a lidar com a ansiedade da mudança, por exemplo? São tudo coisas que se treinam desde pequenino, ao entrar na escola ou ao mudar de casa, nessas pequenas mudanças.” O treino, no entanto, pode resultar em diferentes performances: “Ou se desenvolve um instinto para a descoberta e para o novo ou um medo do que vai ser o futuro.” Para o psiquiatra, se as crianças e jovens de hoje querem estar preparadas para o amanhã, há uma “regra” central: “É importantíssimo desenvolver a capacidade de resolver situações e não esperar que elas se resolvam por si. Ter prazer em pensar é crucial para que uma criança seja saudável.”

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A saúde mental também se treina

Em suma, o mundo está a mudar, sim, com toneladas de informação, de canais de comunicação e de velocidade, mas “a maneira como interagimos com ele é que conta”, insiste João Beirão, que acredita que é esta capacidade de resposta que poderá moldar o futuro. O problema não está na Internet ou no smartphone, mas em como os usamos; não está em termos muitas atividades programadas, mas em sabermos sentir-nos mentalmente livres quando não temos nada para fazer. É este “treino” que faz da infância e da adolescência etapas decisivas. Também por isso, a OMS chama a atenção para o facto de metade das doenças mentais surgirem até aos 14 anos.

A mesma instituição, porém, alerta para o aumento de problemas de saúde mental entre os mais jovens, fazendo temer o futuro. Mas será que estamos mesmo pior ou apenas mais atentos à saúde mental e perante um maior fluxo de diagnósticos? “Não é a minha ideia que estejamos a criar uma sociedade mais deprimida ou mais doente”, diz João Beirão, olhando para o futuro com bastante calma e ponderação, mas também com memória. “As escolas são muito mais inclusivas e há uma maior atenção sobre o outro e sobre as suas diferenças e problemas. Hoje, há muito mais oportunidades e estímulos para os jovens do que no passado”, compara o médico. Respeitar os seus direitos é, assim, a melhor forma de preservar a sua saúde mental.

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