Viver com uma doença crónica: o novo normal

Viver com uma doença crónica: o novo normal
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Fotografia de Rodrigo Cabrita
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aumento da esperança média de vida foi um prémio indiscutível da ciência, mas também criou a possibilidade de se viver os últimos anos com uma doença crónica. Desejamos viver vinte anos doentes? E queremos trabalhar até aos 70?

Pedro Sousa e Silva sempre imaginou continuar tão ativo como fora profissionalmente quando se reformasse. Professor universitário e representante de Portugal na Agência Europeia do Ambiente, mantinha os hábitos físicos dos seus colegas, sobretudo os do norte da Europa.

Nos seus planos, o pequeno barco à vela que tinha ancorado na marina de Oeiras ia permitir-lhe continuar a velejar, como durante tantos anos fizera no “fantástico” Báltico. Quando o viam sair, os amigos portugueses da sua geração diziam-lhe que “já não tinham idade para o acompanhar”, que a função deles agora era serem “‘funcionários’ dos filhos e cuidarem dos netos”.

Até que Pedro Sousa e Silva foi obrigado a parar devido a uma sucessão de lesões nos ombros e a várias cirurgias. Logo no início de 2021, ficou infetado com Covid-19 e perdeu o controlo da sua vida. Aos 70 anos, acordou numa cama de hospital depois de dois meses e meio em coma. Tinha perdido a mobilidade e deixou de ser autónomo. Até ao final desse ano, ficaria internado numa unidade de cuidados especializados e de reabilitação, de onde saiu em cadeira de rodas. “Nunca pensei. Nunca supus uma deficiência ou uma doença como estas que tive”, diz agora, aos 72 anos, o matemático e professor universitário jubilado. “Estava completamente deprimido.”

Começou por procurar soluções para a recuperação física e mental em instituições próximas da sua área de residência. “Tudo o que encontrei não era para recuperar, era mais para morrer”, lamenta. Pagou ele próprio as sessões de fisioterapia e aos poucos voltou a andar. Conseguia dar curtos passeios junto ao Jardim de Paço de Arcos onde, há cerca de um ano, encontrou numa “pequena casinha”, a Aproximar. Decidiu entrar e foi acolhido por uma psicóloga, uma gerontóloga e uma socióloga. “Tinham um grande grau de conhecimento.” Mais do que isso, convenceram-no a acompanhar o grupo que duas vezes por semana faz exercício. Aquele “chamamento” que ali recebeu fez com que se sentisse obrigado a sair de casa. A caminhar apesar das suas deficiências. Até a participar nas atividades artísticas, como o desenho, que nunca fez.

“Quero crer que só a parte do convívio com outras pessoas da minha idade fez-me reviver. Eu já tinha tido o milagre de ter sobrevivido, porque os médicos, na altura da Covid, chamaram a minha família para se despedir de mim.” Nas primeiras vezes que foi caminhar com o grupo às sextas-feiras pelo paredão, em Oeiras, ficava para trás, sentava-se a descansar e esperava que voltassem. “Hoje vou à frente e já estou a aguentar a parte respiratória.”

Também Fátima Domingues foi apanhada por uma espiral negativa. Apesar de se ter reformado aos 67 anos, continuou a trabalhar a meio tempo como formadora num centro de reabilitação profissional. Era assim que ocupava as manhãs, entre as 8h00 e as 13h00. E à tarde estava com o neto. “Foi muito bom”, conta.

Todavia, com a pandemia, decidiu ir para casa no final de 2021. “O ano de 2022 foi o pior da minha vida.” Habituada desde sempre a acordar às 6h30 da manhã, somava horas e horas ao tempo sem ocupação. O bebé também já tinha entrado para o infantário, pelo que as tardes eram semelhantes. “Senti-me completamente inútil. Comecei a sentir sinais de depressão”, conta. Também começou a ganhar peso. Escolheu tentar manter-se ativa e fazer caminhadas. Foi num desses passeios que observou o grupo de Pedro Sousa e Silva a fazer o mesmo, mas em conjunto. “Porque é que não estou numa coisa destas para conviver e ter um incentivo?” Inscreveu-se e somou às duas sessões por semana de atividade física, aulas de dança meditativa, o clube de leitura, o grupo de discussão e cidadania.

Desde abril último, já perdeu peso. Mas, sobretudo, sente-se recuperada de uma situação de debilidade quanto à sua saúde mental. “Estou bastante bem emocionalmente, que era o que não estava. Estava no fundo.”

Pedro Sousa e Silva descansa após uma caminhada matinal. Em baixo, a Avenida Marginal, no troço entre Paço de Arcos e Oeiras (Foto: Rodrigo Cabrita)

Nada raro: 30% dos anos de vida com limitações

As histórias de Pedro Sousa e Silva e de Fátima Domingues representam bem o paradigma atual. Com o aumento da esperança média de vida, preveem-se quase duas décadas passadas na reforma, mas esses anos facilmente são perturbados por problemas de saúde – nomeadamente doenças crónicas, que em 2019 já afetavam 3,9 milhões de pessoas em Portugal e com tendência para aumentar – e isolamento social, que pode transformar-se em depressão. Tudo isto contribui para o declínio físico e mental, que diminui em muito a qualidade de vida que desejaríamos ter nos nossos últimos anos.

O que fazer para que tal não suceda? Procurar atividade física e estímulos cognitivos, como Pedro Sousa e Silva fez, é essencial, mas a resposta começa muitas décadas antes, quando ainda somos jovens. “A partir dos 40 anos toda a gente começa a sentir que tinha mais energia antes. Já estamos a envelhecer há imenso tempo, mas só nos assusta a partir da reforma”, analisa Joana Pizarro Miranda, que fundou o programa Aproximar, confirmando que é necessário “mudar a maneira como as pessoas veem o seu envelhecimento”. “Têm de planeá-lo”, aconselha.

Em Portugal, os dados de 2019-2021 estimavam que a esperança de vida à nascença era de 80,72 anos (77,67 anos para os homens e 83,37 anos para as mulheres). “Apesar de vivermos mais tempo (maior longevidade), o número de anos de vida com saúde e sem limitações (longevidade saudável) corresponde apenas a uma parte da nossa vida”, explica Cláudia Cavadas, investigadora no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. “Isto é bem patente no facto de cerca de metade das pessoas com mais de 65 anos sofrerem de duas ou mais doenças crónicas”, refere, exemplificando com a previsão de que uma mulher nascida em 2020 em Portugal passará cerca de 30% dos seus anos de vida com limitações resultantes de doenças crónicas associadas ao envelhecimento. Estas impactarão a sua qualidade de vida e a possibilidade de ter a tal longevidade saudável.

“As doenças crónicas, quando as apanha, nunca mais as larga. Aos 40 tem uma, aos 50 tem duas, aos 60 três e aos 70, quatro”, refere o reumatologista e professor na Nova Medical School, Jaime Branco. É aquilo que o seu colega João Freitas Cruz chama “ir colecionando doenças”. O especialista em Medicina Geral e Familiar da CUF recorda que há um risco maior de as doenças crónicas surgirem em “idades cada vez mais precoces” dado o estilo de vida mais sedentário, com profissões que obrigam as pessoas a estarem paradas todo o dia e com uma alimentação desregrada.

A boa notícia é que é possível prevenir uma boa parte destas doenças. “É essencial desde uma idade precoce, pelos 25-30 anos, começar a ter consultas regulares com o médico de família para avaliar que mudanças no estilo de vida deve fazer”, diz João Freitas Cruz. “Procurar ter um peso dentro da normalidade e fazer exercício (pelo menos três vezes por semana) são medidas boas para tudo e previnem-se várias doenças, como cirrose hepática, osteoporose, demência, cancro do pulmão e hipertensão, e diminui a possibilidade de um enfarte, um AVC ou diabetes”, enumera o reumatologista e antigo diretor da Nova Medical School. “Se não fumar, tem muito menos hipóteses de vir a ter enfizema ou bronquite crónica”, exemplifica Jaime Branco, que tem defendido um programa global de literacia em saúde, conjugado com medidas como impostos sobre determinados produtos alimentares, tabaco ou álcool, que “proíbem de forma indireta” o seu consumo em excesso. Cláudia Cavadas soma ainda outros cuidados essenciais, como ter uma cultura de sono de qualidade, reduzir o stress, manter relacionamentos sociais e atividades intelectuais – estes últimos são ingredientes para o sucesso da recuperação de Pedro Sousa e Silva.

“As doenças crónicas, quando as apanha, nunca mais as larga. Aos 40 tem uma, aos 50 tem duas, aos 60 três e aos 70, quatro”

Jaime Branco, reumatologista e professor na Nova Medical School

Estar um passo à frente da doença

Para quem, como Margarida Navalhinhas, de 32 anos, convive com uma doença crónica desde muito cedo, o segredo para conseguir controlá-la é “antecipar”: “A minha perspetiva é andar sempre um passo à frente das doenças. Fazer o que puder para me manter saudável (exercício físico, alimentação saudável, psicoterapia, que nos ajuda a lidar com a imprevisibilidade da doença). Não ter medo de ir ao médico, fazer um montão de exames, para termos o máximo de controlo possível.”

No seu caso, vive com uma doença crónica e neurodegenerativa desde a adolescência. Aos 15 anos, dores fortes de cabeça e de costas e dormência nas mãos foram o alerta do corpo. O primeiro diagnóstico foi um síndrome neurológico isolado que poderia evoluir para esclerose múltipla. Começou a ser medicada. “Dos 15 aos 18 foi tudo normal. Escolhi o curso que queria, fiz as viagens que achava que devia fazer.” Licenciou-se em Sociologia e trabalhou no apoio a pessoas sem-abrigo. Depois, a partir dos 27, 28 anos, começou a ter mais sintomas, como tonturas e fadiga, e as defesas do sistema imunitário também baixaram. “Tive de alterar algumas coisas.” Hoje é vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), onde é socióloga e coordena a delegação de Évora deste organismo. É ainda representante na rede europeia de jovens com a doença, a EMSP. Margarida e toda a SPEM trabalham para sensibilizar mais para a doença. Dão apoio em terapia da fala, psicologia, fisioterapia ou apoio à empregabilidade. Tem a certeza de que a informação que dá e recebe de pessoas com a mesma doença é essencial para perceber os sintomas a que, de outro modo, talvez não desse valor.

Sabe como é envelhecer com EM? “Depende de caso para caso, é uma doença neurodegenerativa e não tem cura. Por isso é que os diagnósticos têm de ser o mais precoces possível para começar a atuar cedo também”, refere. Há receios sobre a evolução da doença? “Há sempre. Aquele medo das dificuldades no andar, a nível visual. Mas aprender sobre ela tem-me ajudado a perceber como pode evoluir”, explica. Para já, “há muita investigação na área e medicamentos a serem testados. É um fator de esperança”, afirma. “Continuamos a tentar descobrir a cura.”

Ao mesmo tempo que Margarida continua a procurar conhecer-se e à doença com a qual vive há já dezassete anos, também a comunidade científica procura respostas. Quem sabe em que ponto estarão daqui a algumas décadas?

“[Quero] andar sempre um passo à frente das doenças. Fazer o que puder para me manter saudável. (..) Não ter medo de ir ao médico, fazer um montão de exames”

Margarida Navalhinhas

Residências Montepio

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Saúde versus capacidade económica

Planear e prever são, portanto, verbos essenciais quando se prepara o envelhecimento. Esse planeamento deve ocorrer a vários níveis. É necessário identificar as condições em que cada idoso vive. A Residências Montepio disponibiliza um serviço de apoio domiciliário (SAD) que integra cuidados de saúde, sociais e familiares. Outro dos serviços colocados à disposição dos utentes, o de Teleassistência, protege o utente dentro e fora de casa, garantindo uma resposta imediata em situações de emergência, bastando para tal acionar um botão.

Se a sua casa se localizar numa rua inclinada, com os passeios danificados ou onde não existem transportes, pode iniciar um processo de isolamento em casa. As próprias casas podem ser adaptadas às necessidades dos idosos, existindo inúmeros projetos (a nível nacional e local) de telemonitorização. Por exemplo, o projeto S@úde+Perto, desenvolvido pela NOS, parceira Montepio, com a Fundação de Nossa Senhora da Guia e a Hope Care, tem permitido monitorizar de modo remoto, através de tecnologia 5G, a tensão, os níveis de oxigénio e de glicose, o peso ou a temperatura de perto de 500 idosos na zona centro do país. Com este acompanhamento em permanência, é possível reduzir os episódios de urgência e os internamentos hospitalares.

Depois, é também relevante ter uma almofada financeira para conseguir cumprir os sonhos e projetos que se podem colocar nesta fase da vida, mas também para fazer face às despesas com saúde, eventuais apoios domiciliários ou a instalação em residências sénior. Sabe-se que é sobretudo nos últimos dois anos de vida – independentemente da idade que se tenha – que ocorrem os maiores gastos com a saúde, explica Maria João Guardado, coordenadora da Unidade de Investigação Interdisciplinar – Comunidades Envelhecidas Funcionais/Age.Comm do Instituto Politécnico de Castelo Branco. O que preocupa esta demógrafa é que uma percentagem muito elevada de pessoas tem “pensões mínimas (de cerca de 400 euros), pelo que têm uma margem de manobra pequena que não lhes permite aceder a apoios domiciliários, mesmo quando são comparticipados”.

“O grande paradigma atual é envelhecer em casa e na comunidade e é necessário desenvolver condições” para que tal suceda, refere Maria João Guardado, recordando que se “a maior parte das instituições tem estado formatada para o cuidado habitual, institucionalizado, já se vão encontrando outras soluções, como casas independentes”, onde as pessoas mais velhas fazem a sua vida de forma autónoma mas contam com o apoio nas tarefas domésticas, por exemplo.

“O grande paradigma atual é envelhecer em casa e na comunidade e é necessário desenvolver condições”

Maria João Guardado, coordenadora da Unidade de Investigação Interdisciplinar do Instituto Politécnico de Castelo Branco

A reforma como o início de uma nova etapa

No essencial, resume Cláudia Cavadas, “promover uma cultura de envelhecimento saudável, investir em políticas públicas e fornecer recursos adequados são medidas importantes para permitir que as pessoas aproveitem a longevidade quando chegam à idade mais avançada”. Para isso, continua a professora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra, “é essencial que governos, instituições de saúde e a sociedade em geral trabalhem em conjunto para criar um ambiente favorável ao envelhecimento ativo e saudável”.

Joana Pizarro Miranda foi recolhendo experiências internacionais nos países onde viveu enquanto embaixatriz. E hoje tem a certeza de que a oferta tem de ser como o programa Aproximar, associado à Santa Casa da Misericórdia de Oeiras e que coordena. “Sabemos que estamos a fazer um bom trabalho, temos de nos afirmar como proposta”, refere. O programa está focado na prevenção e na intervenção na solidão crónica e no isolamento, apoia cerca de 80 pessoas com uma média de idades de 72 ou 73 anos, a grande maioria mulheres. A premissa é desenvolver programas como estes num âmbito local. Tem de ter “um âmbito geográfico suficientemente pequeno que leve à participação”, explica. “Se puder integrar-me na minha comunidade em projetos de voluntariado, se puder trabalhar apenas algumas horas, isso vai devolver-me um sentido de utilidade”, que é o que muitas pessoas perdem quando se reformam e que leva ao início de processos de declínio cognitivo e físico. Essa é também a perspetiva da demógrafa Maria João Guardado. “As pessoas veem a reforma como uma espécie de fim. Não. É o fim de uma etapa e o início de outra.”

“É essencial desde uma idade precoce, pelos 25-30 anos, começar a ter consultas regulares com o médico de família para avaliar que mudanças no estilo de vida deve fazer”

João Freitas Cruz, especialista em Medicina Geral e Familiar da CUF

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