Da mala de cartão aos trolleys elegantes

Da mala de cartão aos trolleys elegantes
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Ilustração de Sérgio Veterano
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iago Strecht emigrou duas vezes e trabalhou em três cidades estrangeiras durante mais de seis anos. É através dos olhos de quem conhece bem o que é ser emigrante qualificado que tentamos perceber por que razão cada vez mais profissionais deixam Portugal e o que pode representar este êxodo para o futuro do país.

“Duas malas de cartão numa terra de França / Um português deixou assim seu Portugal / Como tantos outros se ele não perdeu a esperança / Um português que deixou seu Portugal.” Em 1978, Teolinda Joaquina de Sousa Lança, ou Linda de Suza, cantava o sentimento de quase um milhão de portugueses que emigraram, muitas vezes clandestinamente, para França, Alemanha, Suíça e até para o Brasil ou África do Sul.

Longe vão esses tempos da emigração pouco qualificada, quando, entre 1960 e 1974, os portugueses deram o “salto” por vários motivos, com dois à cabeça: a fuga à Guerra Colonial e a crise na agricultura. Sem espaço no setor primário da economia, muitos trabalhadores, sobretudo nas áreas rurais, tentaram, sem sucesso, encontrar emprego noutra área de atividade. O último recurso? A mala de cartão.

Segundo o Pordata, o pico dessa emigração aconteceu em 1966, quando 120 239 portugueses saíram do país. Ao todo, deixaram Portugal 940 720 pessoas entre 1960 e 1974. Foram precisos quase 40 anos para que a emigração portuguesa atingisse um novo pico: em 2014, emigraram 134 624 portugueses. No total, entre 2011 e 2021 saíram do país mais de um milhão de pessoas (1 057 519, ainda segundo o Pordata). Desta vez, porém, a mala de cartão de Linda de Suza foi parcialmente substituída por trolleys elegantes, fruto da emigração cada vez mais qualificada: jovens ou até adultos com carreiras sólidas que optam por continuar os estudos e a profissão no estrangeiro.

O final da década de 1980 terá sido o período mais atrativo para ficar em Portugal. Já nos anos 2000, a emigração disparou (Fonte: Pordata)

“As gerações mais jovens têm muita vontade de conhecer o mundo”, revela Tiago Stretch, vice president of growth da SamyAlliance, empresa que promove soluções digitais para as marcas. “Os programas do estilo Erasmus são hoje muito divulgados e participados. E há muitos jovens [estrangeiros] a virem para Portugal, o que faz com que a nossa juventude tenha acesso a culturas muito diferentes”, explica. De acordo com o especialista em marketing digital, o boom do turismo na segunda metade da década de 2010 também terá contribuído para que, no pós-troika, a emigração portuguesa continuasse em alta. “Os turistas ajudam a abrir a mente e a visão [de sair]. Este país está muito mais aberto, assim como a Europa e o mundo em geral.”

O papa-milhas que voltou a Portugal

Tiago Strecht sabe o que é ser emigrante, ainda que, ao contrário da grande maioria dos seus congéneres, a motivação para sair não tenha sido financeira. Em 2009, com uma carreira e vida pessoal já “bastante sedimentadas” em Portugal, aceitou o desafio de viver e trabalhar em Frankfurt, Alemanha, um convite feito pela Leo Burnett, agência de publicidade na qual trabalhava desde 2003. “Aceitei logo, não tive grandes dúvidas”, recorda.

Na capital financeira da Europa encontrou uma agência multinacional, com colegas de várias nacionalidades. “As primeiras pessoas com quem tive contacto direto? Americanos, europeus e alguns asiáticos. Foi muito fácil criar um grupo de trabalho e pessoal para conviver durante o fim de semana, porque eram pessoas que também [estavam fora do seu país]”, explica.

A integração foi ainda facilitada pelas constantes viagens a Portugal 一 de 15 em 15 dias 一, negociadas antecipadamente. “Vinha à sexta-feira e voltava na segunda-feira de manhã.” O principal problema foi a língua, apesar de ter tido aulas de alemão. “Ainda hoje só falo entre 40% a 50% alemão. Percebo a lógica das conversas, respondo a algumas coisas básicas, mas falar corretamente não.”

Trocar a valsa pelo tango

Quase quatro anos após trocar Lisboa por Frankfurt, Tiago voltou a mudar. Desta vez, de continente. “No último ano, na Alemanha, desenvolvi um projeto global e perguntaram-me se estava disposto e disponível para liderá-lo em alguns mercados. Achei que a Argentina era um mercado interessante para conhecer”, explica. Pelo caminho ficaram Austrália e Ucrânia, as outras hipóteses em cima da mesa.

Trabalhou em Buenos Aires durante 14 meses, até que o telefone tocou com mais um desafio. “Estava há quase seis anos fora do país e convidaram-me para criar uma agência de meios digitais de raiz em Portugal, a Performics. Achei que era muito interessante para a minha carreira, numa área que não dominava tanto.” Foi a sede de conhecimento, assim, que trouxe Tiago de volta a Portugal e a Lisboa. No entanto, o chamamento do estrangeiro nunca cessou. “Tive sempre a visão de ir novamente para fora. Foi o que fiz.” Desta vez, o publicitário mudou de empregador 一 do grupo Publicis para o Omnicom 一 e em 2015 regressa à Alemanha, desta vez a Düsseldorf, como diretor de planeamento estratégico da agência de publicidade BBDO Proximity Worldwide. “Já conhecia a Alemanha e achei que fazia sentido regressar.”

Sol de pouca dura. Tiago estava há pouco mais de um ano em Düsseldorf quando o grupo Publicis voltou a propor-lhe o regresso a Portugal. Desta vez, o desafio foi o de integrar as áreas de media e de criatividade da Publicis One, uma operação que envolveu juntar 100 pessoas de cinco agências diferentes. “Foi o culminar do que queria fazer no grupo.” E foi a viagem derradeira, até agora, como emigrante.

“Reconheço que a nossa geração não tinha muito essa vontade de ir para o estrangeiro, mas a nova tem. A minha filha mais velha tem 10 anos e já falamos de oportunidades que possam existir de ir para o estrangeiro.”

Tiago Strecht

Uma geração global

Durante os mais de seis anos em que esteve emigrado, Tiago Strecht encontrou dois “Portugais”. O primeiro, encostado à parede pelo pedido de ajuda financeira e consequente vinda da Troika (2011-2014), estava “muito triste, desiludido e em baixo”. “Sentia muito isso. Com alguma imaturidade, por estar lá fora, achava: ‘como é possível estarem tão em baixo quando há tantas possibilidades pelo mundo fora?’” Hoje, porém, Tiago admite que “nem todas as pessoas têm a capacidade ou o desejo de emigrar”.

Em agosto de 2016, quando regressou pela segunda vez a Portugal, a “crise já não se via”. “Estávamos a entrar num momento mais alegre do ponto de vista social, até financeiro, as pessoas sentiam-se mais leves. O turismo estava em alta, todos queriam vir para Portugal.”

Descobriu, entretanto, que entre os objetivos dos novos colegas de agência, sobretudo os mais novos, estava o mercado internacional. “As pessoas estavam com avidez de abraçar e aceitar todas as aprendizagens, para poderem produzir, mostrar mais e projetar [o seu trabalho] lá fora”, recorda.

Esta ânsia de sair de Portugal pode ter várias leituras. O estudo “Êxodo de Competências e Mobilidade Académica de Portugal para a Europa”, realizado pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, explica que estamos a perder a geração mais qualificada de sempre para outros países 一 25% dos portugueses que deixaram o país na última década são jovens qualificados. A principal razão apontada para a emigração qualificada são os baixos salários praticados em Portugal. Dos 1 011 respondentes ao questionário que deu lugar ao relatório, 70% ganhavam menos de 1 000 euros por mês em Portugal. No país de destino, mais de 50% passaram a receber mais de 2 000 euros e 26,5% acima de 3 000 euros.

Outras razões foram a estabilidade profissional e pessoal e a independência financeira dos pais. Finalmente, a falta de reconhecimento do seu trabalho, em Portugal, contribui para a resistência em continuar no nosso país.

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Qual o preço da emigração qualificada?

A vontade que as gerações Z e Y têm de estudar, viver e trabalhar no estrangeiro contrasta com os (então) objetivos de vida da Geração X (nascidos entre meados da década de 1960 e início da década de 1980), da qual faz parte Tiago. “Reconheço que a nossa geração não tinha muito essa vontade de ir para o estrangeiro, mas a nova tem. A minha filha mais velha tem 10 anos e já falamos de oportunidades que possam existir de ir para o estrangeiro. Campos de férias, por exemplo, coisas que possam abrir as portas [a essa paixão].”

O profissional de marketing diz que quer ser o motor dessa vontade, mas os próprios jovens têm hoje “acesso a um conjunto de informações e facilidade em ir para fora, mesmo quando são mais novos.” A tecnologia e o digital, a maior facilidade em entrar noutros países e as viagens mais baratas são algumas das razões que levam estas gerações a acalentar o sonho de ir para o estrangeiro.

Quem fica a perder com esta tendência? Portugal e a economia portuguesa, que fazem o investimento na formação, mas não têm o retorno para o desenvolvimento do país. Como responsável pelo crescimento de uma empresa, Tiago Strecht sabe que há “muito talento em Portugal”, que está a ser desenvolvido por universidades cada vez mais viradas para a prática e com “professores mais jovens”.

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“Há uma camada de professores, tanto em escolas primárias, secundárias ou universidades, que se está a jubilar e a dar lugar a professores mais jovens, que têm uma tendência para simplificar o ensino. Isso é bom para criarmos uma massa mais apta a lidar com o nosso dia a dia, com a realidade”, continua Tiago Strecht, que conclui: “Hoje conseguimos ter um bom nível de ensino, que forma cada vez melhor, fruto do acesso à educação, à cultura, à Europa e ao mundo.”

Tiago Strecht é a exceção que confirma a regra. Nem todos os portugueses qualificados que emigraram na última década regressaram a Portugal, como ele. Se tal acontecesse, seriam boas notícias para a competitividade da nossa economia, para a multiculturalidade da sociedade e visão de futuro. Caso contrário, ficaremos com os custos da formação e a ausência da qualificação. Ainda iremos a tempo de quebrar este ciclo?

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