Sair à noite e dançar: em mutação ou démodé?

Sair à noite e dançar: em mutação ou démodé?
10 minutos de leitura
Ilustração de Sérgio Veterano
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omo está a vida noturna a reagir à sociedade dos ecrãs e das redes sociais, das plataformas de encontros, dos confinamentos provocados pela pandemia e da independência financeira tardia? Nas próximas décadas, ainda nos juntaremos para dançar ou ir a um concerto? E o papel dos músicos e artistas, será que mudou? Eis o que Fernando Pereira, sócio do clube lisboeta Jamaica, e Joana Espadinha, compositora e professora no Hot Clube de Portugal, têm a dizer sobre o futuro da noite, dos espetáculos e da criatividade.

Para Fernando Pereira, a discoteca Jamaica é “uma escola”. Foi lá que começou a trabalhar, onde aprendeu a defender-se e a saber o que queriam dizer certos olhares. O pai morreu quando o então estudante de arquitetura tinha 19 anos e Fernando passou a assumir funções administrativas e a fazer as noites de sexta-feira, sábado e domingo. “Apanhei com as duas perspetivas: a vontade de sair à noite, como jovem, e a responsabilidade do trabalho”, conta. Era o início da década de 1990, a vida noturna de Lisboa “estava em grande expansão” e “as noites eram loucas”, lembra o empresário. Contrariando o propósito da abertura, em 1971 – o Jamaica abriu como bar de alterne, sobretudo para marinheiros e outros viajantes de passagem pelo Cais do Sodré –, desde o pós-25 de Abril que este se tinha tornado um local “para estar com os amigos, para beber umas cervejas e para dançar”. Nada de radicalmente diferente dos dias de hoje, 48 anos depois, exceto em alguns pontos.

Uma das mudanças é, na verdade, gritante. “Quando comecei a trabalhar no Jamaica, tínhamos 90% de homens e 10% de mulheres. As mulheres tinham de pedir autorização para sair e diziam sempre que iam para a casa de alguém. Estava fora de questão dizerem que se iam divertir para o Cais do Sodré. Nos anos de 1990, a situação equilibrou-se e agora há mais mulheres do que homens.”

As noites, por outro lado, passaram a ser menos irreverentes. “A loucura era proporcional à quantidade de álcool que se consumia”, afirma Fernando Pereira, que acredita que o maior consumo de bebidas alcoólicas no passado está intimamente ligado a uma maior liberdade financeira. Em Portugal, o PIB per capita estagnou pelo menos desde 2005 e, em 2021, o país tinha o quarto poder de compra mais baixo da União Europeia. “Nos anos 90, havia miúdos com mesadas de 300 euros! A malta jantava fora duas vezes por semana, saía quase todos os dias. Com as sucessivas crises e depois com a pandemia, a juventude viu-se forçada a arranjar alternativas, como comprar vodka no supermercado, juntar-se num banco de jardim e ouvir música do telemóvel. Esta é a noite para muitos jovens de agora.”

Não indicando os motivos, são vários os estudos, em Portugal e noutros países europeus, que apontam para um decréscimo do consumo de álcool e drogas por parte das gerações mais novas. Numa investigação recente da Universidade de Lisboa, dos 1 143 inquiridos, 48,8% afirmaram ter consumido bebidas alcóolicas uma ou mais vezes nos últimos 30 dias. Segundo o Eurostat, embora Portugal seja o país da União Europeia (UE) onde é mais frequente beber álcool (um quinto da população bebe diariamente), os episódios de consumo excessivo são mais raros (acontecem uma vez por mês para 12% da população, quando a média da UE é de 19%).

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“Já não é preciso sair para conhecer alguém”

Ao mesmo tempo, nos últimos anos, muitas discotecas fecharam, indiciando uma possível alteração de hábitos e preferências. Em 2018, o britânico The Guardian informava que, em cinco anos, a atividade noturna no Reino Unido teria perdido 200 milhões de libras, “à medida que os foliões abandonam a pista de dança em busca de novos prazeres”, como ginásios e restaurantes, citando alguns exemplos. “Muitos jovens, agora, simplesmente preferem passar a noite em casa em vez de sair, conhecendo pessoas através de plataformas como o Tinder”, apontava outro artigo do mesmo jornal. Conhecer pessoas ou procurar uma relação amorosa ou sexual já foi um dos grandes motores da noite, mas hoje já não é preciso sair de casa para flertar.

O proprietário do Jamaica corrobora a hipótese. “Quando era jovem, ficava todo nervoso antes de sair à noite. Agora já não é preciso sair para conhecer alguém. O meu filho mais velho [de 26 anos] continua a querer ir a discotecas, mas conheceu as últimas três namoradas nas redes sociais. Se calhar, está aí a razão das quebras gigantescas de público nas grandes discotecas, ou de no Jamaica termos pessoas mais velhas [maioritariamente entre os 40 e os 50 anos, ao contrário do bar Tokyo, ao lado, onde a faixa etária predominante é dos 20 aos 30 anos e as receitas são menores].”

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Por outro lado, os sucessivos confinamentos provocados pela pandemia da Covid-19 podem estar na origem de “problemas de socialização”, acredita o empresário. “Haverá muita gente nova em casa, completamente fechada, que não faz a mínima ideia do que é a noite e que não consegue perceber a mais-valia que é haver contacto. Chegar aos 30 anos e não saber o que quer dizer um determinado olhar é preocupante. Mas não sei se isto representa a maioria dos jovens.”

Precisamente porque o mundo ainda está a sair de uma pandemia, é arriscado tirar ilações muito fechadas sobre o que está a acontecer aos hábitos noturnos dos jovens. “As ruas do Bairro Alto continuam cheias” e a reabertura do Jamaica no seu novo espaço, depois de 50 anos na Rua Nova do Carvalho, “está a correr bastante bem”, assegura Fernando Pereira, que lembra: “Acabámos de sair de uma situação que nos quebrou. Vamos ver o que vai acontecer agora.”

Continuarão as pessoas a divertir-se da mesma forma? “Eu acho que sim”, acredita o sócio do Jamaica, lançando uma pista sobre aquela que lhe parece ser a grande vantagem da vida noturna: “As casas da noite são o melhor psicólogo para a sociedade e isto é algo que ainda continua a valer.” Para os próximos 50 anos, Fernando Pereira deixa um desejo: “Gostava muito que isto continuasse, que o espaço se mantivesse uma referência mesmo que vamos envelhecendo. E que pensemos: ‘É aqui que voltamos aconteça o que acontecer, filhos e netos.’”

Aos artistas ninguém lhes vai tirar o sol

Se, para sair à noite, basta ter vontade para se divertir, a força motriz de muitos dos nossos momentos de lazer e entretenimento são os artistas. No entanto, os últimos três anos foram desafiadores, e transformadores, para a indústria do espetáculo. Com o cancelamento de concertos, peças de teatro e exposições, muitos criadores mudaram de vida ou colocaram a carreira em stand-by. Os que continuaram, como Joana Espadinha, fizeram do isolamento um ato de criatividade.

“Não falta talento no nosso país, o que faltam são os meios e os apoios para que esse talento possa ganhar asas” (foto: Joana Linda)

“A criatividade nunca é um problema para os artistas”, garante a compositora, que lançou o seu quarto álbum a solo, Ninguém nos vai tirar o sol, em 2021. “Nós refletimos a realidade que nos rodeia, portanto [a pandemia] pode, naturalmente, ser inspiradora. A arte tem esse papel”, explica.

Em março de 2020, quando começou a pandemia, a artista já estava em casa a compor o seu novo álbum. Ainda assim, sentiu “inquietação” para escolher as canções que fariam parte do disco. “Houve canções que deitei fora porque já não faziam sentido. Quando o mundo muda, há uma fase em que pensamos que o que escrevemos já não se adequa, já está datado. Mas outras canções ganharam novos significados”, revela. Este foi também um período de coincidências. “Tenho uma letra que diz ‘Quem me dera saber que sou feliz’. Outra afirma: ‘Fui para casa ver o sol no televisor’. Olhei para aquilo quase como se tivesse feito futurologia, mas não fiz”, graceja.

Público sedento de concertos

Metade das canções de Ninguém nos vai tirar o Sol foi escrita em pandemia, mas os atrasos na gravação do álbum, confinamentos obligent, obrigaram Joana a ir para estúdio com uma “barriga de oito meses”. Quando o álbum saiu, confessa, foi quase uma terapia. “Falamos de incerteza e, naquele momento, uma pessoa que vai ser mãe já está a sentir aquilo na pele. Dizia-se, com ótimas intenções, que ia ficar tudo bem. Só que não ficou e nunca podemos ter a certeza do que vai acontecer. Eu preferi agarrar-me ao que ninguém nos podia tirar, as coisas mais importantes: a família, os amigos, o nosso bem-estar. E o sol é uma metáfora para isto tudo.”

Em 2020, muitos músicos partilharam com o público, através do Instagram e de outras plataformas digitais, concertos em casa. Joana Espadinha também o fez, mas a ideia da partilha gratuita de conteúdos, sobretudo numa fase em que muitos músicos ficaram sem rendimentos, trouxe à comunidade artística mais dúvidas que certezas. “Muitos músicos perguntaram-se se era a machadada final: dar de borla o último resquício do nosso ouro”, refere.

Foi assim, com um misto de preocupação e expectativa, que os músicos foram regressando aos palcos. E a verdade é que a resposta do público, sedento de ouvir música ao vivo, foi inimaginável. “Houve um período de euforia. Senti que as pessoas estavam felizes por ouvirem música ao vivo, tiveram saudades. Até porque é algo impossível de reproduzir”, recorda.

Todo o período pandémico, aliás, foi “particularmente profícuo” para a música portuguesa, com o lançamento de inúmeros álbuns e a diversificação de públicos. “Tenho esperança que, mesmo com os efeitos da crise, a música ao vivo seja essencial para as pessoas. Em 2022, sentimos que o público estava com uma energia incrível e vontade de ouvir música”, confessa. Ainda assim, Joana Espadinha sabe que não há dinheiro para tudo e que os jovens terão “limitações financeiras” para continuar a frequentar concertos e assistir a outros atos de cultura. “As pessoas vão ter de fazer escolhas, entre as quais a compra de bilhetes para concertos ou ter dinheiro para sair à noite. Muitas vezes, a cultura é considerada uma coisa supérflua. Mas não é, porque lhes alimenta a alma”, refere.

Na última década, com o boom do streaming e das plataformas que distribuem música gratuitamente, o “artista acabou por ficar no final da cadeia”, considera Joana Espadinha. “Nós é que produzimos a música, mas temos muito pouco retorno para aquilo que escrevemos. E cada vez é pior, desde que os álbuns deixaram de vender.”

As pessoas continuarão a sair à noite, seja para dançar numa discoteca ou assistir a um concerto, defendem Fernando Pereira e Joana Espadinha (foto: Getty Images)

Vem aí uma geração talentosa

Além de compositora e performer, a solo e na banda Cassete Pirata 一 que, curiosamente, também lançou o álbum A Semente em 2021 一, Joana Espadinha é professora de Songwriting, Arranjos e Composição na escola de jazz do Hot Clube de Portugal. A artista não tem dúvidas de que vem aí mais uma geração com talento 一, mas agora com mais ferramentas digitais para criar.

“A maior parte dos meus alunos deseja uma carreira profissional na música. Às vezes, isso faz-me ter uma responsabilidade enorme. Mas, ao mesmo tempo, é inspirador assistir ao sonho, porque nos alimenta e nos faz trabalhar arduamente”, considera. A nova geração tem ainda “menos preconceitos” em relação às ideias e criações. “Lembro-me de, na minha época, ter sentido receio em dizer que ia começar a escrever músicas pop. Não era muito comum, nas escolas de jazz, haver alunos a quererem assumidamente fazer outro estilo de música.”
Hoje, as amarras musicais caíram. “Tenho alunos que querem compor, fazer a própria música, muitos já têm projetos e nunca ouvi ninguém apelidar um estilo de música como inferior por não ser jazz. Sinto que eles têm a cabeça mais aberta e não tenho dúvidas de que terão o que é preciso para irem atrás dos seus sonhos”, explica. Através de programas como Logic ou Garage Band, qualquer pessoa pode gravar e fazer maquetes em casa. “Têm o esboço de uma canção que depois podem levar para estúdio, entregar a um produtor.”

É esta a geração que vai estar em palco dentro de alguns anos, cuja música se ouvirá na rádio, nas plataformas de streaming e nas redes sociais que ainda não foram inventadas. “Não falta talento no nosso país, o que faltam são os meios e os apoios para que esse talento possa ganhar asas”, conclui Joana Espadinha.

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