Quiet quitting: conheça esta forma de encarar o trabalho
No universo do quiet quitting, expressões como “horas extraordinárias”, “vestir a camisola” ou “dar o litro” não existem. O movimento sugere que o trabalho não pode invadir o espaço e o tempo da vida privada e que, por isso, o trabalhador deve cumprir apenas o estipulado no contrato de trabalho. Chegando o final do expediente, desativam-se as notificações eletrónicas e o trabalho deixa de aparecer nos ecrãs. O objetivo é evitar que a tecnologia faça prolongar o período laboral e proteger a saúde mental e o tempo livre dos trabalhadores.
Quiet quitting: o que é?
O termo quiet quitting (em português, demissão ou desistência silenciosa ou passiva) surgiu quando um utilizador da rede social TikTok publicou um vídeo explicando o conceito: não se trata propriamente de uma demissão do trabalho, mas sim da ideia de ir mais além no trabalho. “Cumpres os teus deveres mas já não subscreves a mentalidade de que o trabalho tem de ser a tua vida”, ouve-se no vídeo.
Se o conceito de trabalho implica uma troca direta – de prestação de serviços por determinada quantia financeira –, então apenas se deve entregar o trabalho que é realmente pago. Nem mais, nem menos. É isto que advoga o quiet quitting, que ganhou adeptos nas redes sociais (sobretudo entre as gerações mais jovens) e eco na discussão pública.
Cumprir o estritamente necessário é também uma forma de afirmar que o trabalho não pode interferir de forma negativa com a vida privada. Nesse sentido, o trabalhador não deve dar à empresa mais do que o obrigatório, ou seja, não deve trabalhar fora do horário definido (muito menos se o trabalho não for remunerado) nem executar tarefas para além do acordado, evidenciando assim os limites do trabalho.
Tang ping, o (não tão) quiet quitting chinês
Antes da publicação do vídeo no TikTok, que deu lugar ao crescimento do quiet quitting, um movimento semelhante havia já surgido num centro tecnológico da China. Os trabalhadores resolveram protestar contra a precariedade, a falta de reconhecimento, as longas jornadas de trabalho e os salários reduzidos (72 horas semanais, sem lugar a pagamento de horas extraordinárias). Criaram, então, o “tang ping” (em português, “deitar-se ao comprido”), cujo objetivo central é fazer o mínimo possível.
Tecnologia e teletrabalho
O facto de o quiet quitting ter surgido no rescaldo da pandemia da Covid-19 não passou despercebido aos estudiosos do fenómeno. Com a revisão de alguns valores e prioridades de vida e perante a adesão significativa ao teletrabalho, o mundo laboral tem passado por transformações relevantes.
“Enquanto o trabalhador de uma loja termina o seu horário e vai para casa, noutras profissões o trabalho prossegue connosco. Ou seja, as tecnologias permitem que o trabalho seja realizado remotamente e dificultam o processo de desligar. Julgo que essa dificuldade de estabelecer uma barreira entre o local de trabalho e de não-trabalho é um dos grandes motivos para o surgimento desta tendência”, analisa Maria José Chambel, professora na área de Psicologia do Trabalho e das Organizações, na Universidade de Lisboa.
Apesar de, em Portugal, o Código do Trabalho determinar que o empregador deve abster-se de contactar o trabalhador fora do horário laboral, a prática poderá ser diferente. O quiet quitting surge, assim, como uma forma que alguns trabalhadores encontraram para se protegerem de eventuais abusos por parte das entidades patronais. É “um método de defesa”, considera a professora. Os trabalhadores tentam proteger os seus momentos de descanso, lazer, vida familiar ou outras ocupações de eventuais exigências e da atribuição de mais responsabilidades por parte da entidade patronal.
Como acrescenta Carla Freire, professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, “o trabalho é infinito, há sempre tarefas super importantes e urgentes”, e o que o que os quiet quitters tentam fazer é estabelecer um limite. “Creio que tudo assenta na ideia de reciprocidade e na tentativa de equilibrar a relação” entre empregados e empregadores, sugere a académica.
Desistência silenciosa: um movimento de gerações
O fenómeno do quiet quitting é particularmente popular entre as gerações Y e Z (pessoas nascidas desde o início da década de 1980). De uma forma geral, são pessoas que apresentam elevadas habilitações literárias e competências, mas que “sentem que as suas qualidades não estão a ser aproveitadas”, como nota Maria José Chambel. Por outro lado, “são mais orientadas para modelos de flexibilidade e valorizam o bem-estar e as experiências de vida” fora do trabalho, como ir ao cinema ou viajar.
Por estas e outras razões, a tendência é permanecerem pouco tempo na mesma organização, tanto por vontade de mudança como porque vivem tempos mais instáveis, como analisa a especialista em gestão de recursos humanos, Carla Freire. “São pessoas que têm relações mais frágeis com as organizações e que sentem insatisfação em relação ao que recebem e às oportunidades de progressão na carreira”, nota a professora. Assim, se um quiet quitter recebe pouco da organização, quer retribuir na mesma quantidade.
Associado a um “novo paradigma do trabalho”, o movimento rompe ainda com a ideia clássica de “trabalho dignificante”, de Max Weber, em que “o indivíduo tem de provar o seu valor através do trabalho árduo e disciplinado, dentro do espírito do capitalismo”, enquadra Carla Freire. O quiet quitting pode ser visto, por isso, como um sinal dos tempos e de uma possível revisão de valores por parte da sociedade.
Proteger a saúde mental
Alguns estudiosos do fenómeno advogam, ainda, que o quiet quitting é uma tentativa de escapar a problemas de saúde mental cada vez mais visíveis, como o stress, a depressão ou o burnout. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o burnout na lista oficial de doenças, sublinhando a sua relevância no contexto atual e o facto de resultar do stress crónico no local de trabalho. No mesmo ano, a OMS nomeou o stress como a “epidemia do século XXI”.
Por outro lado, um relatório da consultora Gallup mostra um nível bastante reduzido de envolvimento com o trabalho em grande parte dos países ocidentais. Na Itália, apenas 4% dos trabalhadores afirmaram sentir-se entusiasmados com o trabalho; em Portugal, o valor é de 19%. A nível global, o “stress dos trabalhadores atingiu um recorde histórico”, com Portugal a posicionar-se como o sétimo país com maiores níveis de stress no trabalho (46% dos inquiridos afirmaram sentir stress diariamente).
Na perspetiva de Maria José Chambel, o quiet quitting também é uma forma de “salvaguardar a saúde mental”, uma realidade a que as organizações devem estar atentas. A pouca “saúde dos trabalhadores traz repercussões graves para as empresas, que apenas lucram a curto prazo com o excesso de trabalho”, lembra a professora. A longo prazo, podem ser esperadas consequências como o absentismo relacionado com doenças, a perda da “capacidade de desenvolver um trabalho criativo e eficaz” ou mesmo a vontade de mudar de emprego.
Segundo Carla Freire, “o quiet quitting representa uma preocupação” para as organizações, que devem pensar em criar “mais oportunidades de crescimento, formação e reconhecimento, bem como modelos flexíveis e híbridos e, ainda, a possibilidade de contactos informais de qualidade”. Tudo para que o trabalhador se sinta motivado e não com vontade de “desligar”.
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